segunda-feira, 24 de março de 2008

Os bandidos na mesa do café

Depois de uma hora de caminhada tranqüila, algum tempo sem vir a Campos dos Goytacazes, deixo a orla em direção a minha casa no Caju, onde minhas cadelas, a sharpei Queen de la Ricarlos e a poodle Sirica Himalaia, aguardavam-me para um passeio pelo quarteirão. Saímos.
Olho para uma edificação baixa de tijolos vermelhos, com uma placa: Rua Teixeira de Melo. Rua em que nasci de parto normal em casa. Nesses momentos de contemplação, saí um pouco do ar, somente voltando ao ouvir o latido da sharpei. Invade-me uma vontade de mudar de vida, fazer como o narrador do romance "O Enigma da Chegada", de V.S. Naipaul, que se retira para o interior e passa apenas a observar e escrever o que está a sua frente. Sábado, auge da crise de violência em todo o país, comentários sobre a pena dada à Susane e aos irmãos Cravinhos, Lula presidente do Mercosul, Bombardeio e terrorismo no Oriente Médio, brasileiros presos no Líbano. Meus pais me aguardando para o café da manhã. Ao café da manhã, comentários sobre os também condenados, porém a 22 anos de cadeia, assassinos do meu irmão José Renato, ou melhor, sentença dada aos dois que ficaram para pagá-la, pois um já houvera se suicidado na prisão. Ficamos comentando sem muito compreender a vida que nos delega momentos tão plenos de angústia. Comentou-se sobre a situação no país, sobre crimes, tantos crimes, contas fantasmas, entidades fantasmas, ambulâncias superfaturadas, desvios de verbas no hospital do câncer. A própria luz do Planalto, arquitetura que atravessa as vidraças e banha os flocos de poeira que flutuam, metonímia/sinédoque deste nosso país que nos torna também fantasmas, dirige o meu olhar para a mancha de iogurte na mesa do café, duvidando se aquilo não é um ectoplasma desses putos homofóbicos enrustidos que pintam o cabelo e beliscam a bunda das secretárias.
Marcola, o líder do PCC, já leu mais livros do que todos eles juntos. Os da minha geração, que tiveram uma base político-militar - não no sentido de terem feito ações armadas, mas por terem curiosidade em relação às leis da guerra -, esses praticamente já saíram de cena. Ou ganharam lugar no Poder. Fiquei surpreso ao ler que um grande nome do Partido Verde alemão, surgido nos anos 60, deixou o governo, está quase aposentado. Lembrei de tantos outros que se voltaram para suas especialidades acadêmicas, dos que morreram, dos que simplesmente deram uma banana para a idéia de transformar o mundo. De uma certa maneira, foram poupados dessa humilhação que sinto todos os dias ao ver que os bandidos estão triunfando na vida pública, que não só tomaram conta de tudo, mas também tomam café ao riem para você, falam sobre o tempo e reclamam da dureza da vida política. É uma ilusão pensar que o mundo do crime ignora essas variáveis.
O mundo que está ruindo aos meus pés é muito desconcertante, pois leva consigo toda uma forma de pensar a política que nos reduz ao ridículo de quando traz, para dentro de nossos lares, a guerra urbana de São Paulo, a revolta nos presídios do Espírito Santo, a vergonhosa situação do nosso parlamento. Sou interrompido pelo carinho de uma das cadelas. Consigo sorrir, apesar da consciência de que o mundo está ruindo e nos impõe a humilhação de chamar de Congresso brasileiro um lugar onde os dirigentes da mesa estão mergulhados num escândalo e nem sequer pedem licença para ser investigados, um lugar onde o corregedor, num ano eleitoral, foi o primeiro a ser multado pela Justiça por fazer propaganda fora de tempo. Numa semana tão importante, talvez não devesse enfatizar minhas frustrações. Acontece que não estou sendo humilhado sozinho, nem o está a pequena parcela de deputados honestos, sem falar nos brasileiros trabalhadores.
Enquanto não se desvendar o elo entre as quadrilhas que queimam ônibus, metralham policiais, fuzilam inocentes e os bandidos que nos cercam, poucos vão sentir a humilhação que sinto. E quando falo de vínculo não me refiro a advogados, emissários ou mesmo um ou outro deputado que possa estar ligado ao crime organizado. Refiro-me ao plano simbólico tão bem expresso na célebre frase carioca: Tá dominado, tá tudo dominado. O tudo dominado revela-se não apenas em números, mas também em encenações falsas, pequenas omissões, um rígido controle da agenda para que venha à tona o debate dos verdadeiros problemas do país. Os que já foram que nos apontem o lugar correto no front do combate!
Deneval Siqueira de Azevedo Filho

Rútilo Nada, por Claber Borges, aluno do PPGL/UFES

Rútilo nada, de Hilda Hilst:
Uma narrativa pós-moderna?

Qu’envers nous le Néant est traître ;
Que tout, même la Mort, nouns ment,
Et que sempiternellement,
Hélas! Il nous faudra peut-être
Charles Baudelaire, Le squelette laboureur[1]

Hilda Hilst (Jaú, SP, 1930-2004) lançou Rútilo nada pela Livraria e Editora Pontes, de Campinas, em 1993. Além desse conto, o livro continha A obscena senhora D e o conto homônimo Qadós. Em 1994, Rútilo nada recebeu o prêmio Jabuti na categoria “Contos”. Alcir Pécora, professor de teoria literária na UNICAMP, em 2003, organizou a publicação do livro Rútilos pela editora Globo. A edição é composta por Pequenos discursos. E um grande mais Rútilo nada. Recentemente, 2007, esse conto está presente na coletânea intitulada Entre nós que foi organizada por Luiz Ruffato. Os dezenove contos dessa publicação possuem em comum a questão da homossexualidade. O objetivo principal deste ensaio é examinar os elementos pós-modernos desse conto, para caracterizá-lo como uma narrativa pós-moderna. Por opção, esse estudo contemplará apenas a parte em prosa do conto.

Faz-se necessário uma breve introdução sobre o conceito de pós-modernismo. Esse termo “foi usado pela primeira vez na década de 1930, por Frederico de Onis, poeta nicaragüense, para indicar uma reação de menor importância ao modernismo.” (OLIVEIRA, 2004, p. 85). Esse vocábulo disseminou-se, a partir de 1971, com o ensaio POSTmodernISM: a Paracritical Bibliography de Ihab Hassan. Ele ampliou “a noção de pós-moderno às artes visuais, à música, à tecnologia e à sensibilidade em geral, detendo-se em elementos que, de alguma forma, radicalizam ou repudiam os traços do modernismo.” (PELLEGRINI, acesso em 24 jul. 2007). A expressão pós-moderno propagou-se, ainda mais, com a publicação Postmodern Literature and Culture, em 1972.

The term postmodern literature is used to describe certain tendencies in post-World War II literature. It is both a continuation of the experimentation championed by writers of the modernist period (relying heavily, for example, on fragmentation, paradox, questionable narrators, etc.) and a reaction against Enlightenment ideas implicit in Modernist literature. Postmodern literature, like postmodernism as a whole, is difficult to define and there is little agreement on the exact characteristics, scope, and importance of postmodern literature. However, unifying features often coincide with Jean-François Lyotard's concept of the "meta-narrative" and "little narrative", Jacques Derrida's concept of "play", and Jean Baudrillard's "simulacra". For example, instead of the modernist quest for meaning in a chaotic world, the postmodern author eschews, often playfully, the possibility of meaning, and the postmodern novel is often a parody of this quest. This distrust of totalizing mechanisms extends even to the author; thus postmodern writers often celebrate chance over craft and employ metafiction to undermine the author's "univocal" control (the control of only one voice). The distinction between high and low culture is also attacked with the employment of pastiche, the combination of multiple cultural elements including subjects and genres not previously deemed fit for literature. A list of postmodern authors often varies; the following are a few common examples: Thomas Pynchon, John Barth, Kurt Vonnegut, Joseph Heller, Salman Rushdie, Italo Calvino, Donald Barthelme, Don Delillo, and Umberto Eco.[2] (WIKIPEDIA, acesso em 09 set. 2007).

Italo Moriconi, no seu artigo A problemática do pós-modernismo na literatura brasileira, julga que a produção ficcional brasileira, a partir da década de setenta, que problematizou ou que teve como assunto o gênero, a vida urbana ou a metalinguagem pode ser definida como pós-moderna. O texto que é considerado pela crítica universitária como o marco inaugural da prosa pós-moderna no Brasil é o romance diário Em Liberdade de Silviano Santiago, publicado em 1982.

Se há um contexto pós-modernista nos anos 70 e se há elementos pós-modernos em textos de prosa ficcional brasileira antes dos 80, não há dúvida que no Em Liberdade encontramos um conjunto muito mais claro do que seria uma proposta pós-modernista. (MORICONI, acesso em 11 de maio de 2007).


Atualmente, o grande tema da prosa brasileira é a ficção urbana. Isso é um reflexo da industrialização brasileira, que passou a ocorrer em meados dos anos sessenta. Com isso, a ficção passou a enfocar a solidão e a angústia, que estão conectadas a uma gama de impasses sociais e existenciais, características dos grandes centros urbanos. Consequentemente, outros temas relacionados à urbe estão inseridos nessa narrativa como a mulher, o negro, o gay, a violência, a AIDS e o universo das drogas. As minorias não querem mais ser retratadas pelo homem branco, masculino e cristão. Há o surgimento de narrativas produzidas por mulheres, negros, gays e combinações dessas identidades (Ex: mulher-negra; gay-negro; mulher-gay; etc.). Essas narrativas manifestam “uma função política específica, [...], na medida em que procura, [...] desmontar noções conservadoras de sexo e/ou gênero, reconstituindo, revalorizando aspectos sempre escamoteados pelas estruturas sociais dominantes e conservadoras.” (PELLEGRINI, acesso em 24 jul. 2007).

Retomando o propósito central desse trabalho, inicia-se o estudo do conto pelo título: Rútilo nada. Rútilo é um substantivo masculino que é o mesmo que o adjetivo rutilante. É o “que rutila, que fulgura ou resplandece com vivo esplendor, luzente, cintilante; cujo brilho chega a ofuscar.” (HOUAISS, 2001, p.2485). No conto, há diversos sinônimos de rútilo, e adjetivos ou substantivos relacionados à luz: cintilância (HILST, 2003, p.85); luzente (HILST, 2003, p.90); luminosa (HILST, 2003, p.94); brilhos (HILST, 2003, p.94); lustroso (HILST, 2003, p.95); clarão (HILST, 2003, p.96); entre outros. Há, também, os nomes das duas personagens que se referem à luminosidade: Lucius e Lucas. Lucius é um nome latino que significa “luminoso, iluminado, derivado de Lux, luz.” (CRESCER, acesso em 07 de maio de 2007); e Lucas que “é considerado uma abreviação de Lucanus, “natural da Lucânia”, província da Itália. Lucânia pode ser traduzida como “terra da luz”. Sua origem também é atribuída ao grego Loukas, derivado de Lux, luz.” (CRESCER, acesso em 07 de maio de 2007). Nada é um pronome indefinido. É “a negação da existência, a não existência; o que não existe; o vazio.” (HOUAISS, 2001, p.1991). Também significa a “situação que precede a ou que se segue à existência.” (HOUAISS, 2001, p.1991). Partindo da idéia que o nada antecede à vida, é possível remeter-se à cosmogonia originária do pensamento judaico-cristão. Na qual, o universo foi criado do nada. “Do nada fez-se a luz, as águas, as terras, as estrelas e todos os astros do universo. O próprio tempo, segundo Santo Agostinho, foi criado nessa ocasião.” (BAPTISTA, acesso em 20 ago. 2007). É necessário lembrar que a autora teve uma formação religiosa e que, segundo ela própria, toda a sua escrita é atravessada pela religiosidade. Sendo assim, é pertinente propor que ela tenha feito uma transposição, uma transformação séria, segundo Gérard Genette em Palimpsestes (TRANSTEXTUALIDADE, acesso em 04 ago. 2007), da máxima do nada fez-se a luz ao criar o título do conto. Invertendo uma ordem canonizada da concepção judaico-cristã: Rútilo nada.

No corpo do conto, podem-se encontrar algumas intertextualidades. A primeira delas é a alusão.

A alusão remete a outro texto, citação, adágio, provérbio conhecido. É integrada ao texto como uma rápida menção àquilo que já se conhece, estabelecendo paralelos, aproximações, reforçando uma afirmativa ou argumentação. Pressupõe um conhecimento prévio comum sobre o conteúdo da alusão entre quem lê e quem redige. (TRANSTEXTUALIDADE, acesso em 04 ago. 2007).

O texto aludido foi o artigo The crucifixion of El Salvador de Noam Chomsky, publicado em outubro de 1992, no livro What Uncle Sam Really Wants. Lucius, ao ser retirado do velório de Lucas, está atordoado e começa a relembrar os acontecimentos desde que conhecera o namorado da filha. Mas as lembranças vêm aleatoriamente e fragmentadas, dado seu estado de angústia e solidão. “Fulcros ensangüentados, sustentáculos de mim oscilam de lá para cá, pedaços de frases, a redação do jornal batalhões de elite treinados, é um artigo do Chomsky.” (HILST, 2003, p.89). O texto de Chomsky é um levantamento das atrocidades cometidas em El Salvador do final dos anos setenta até os anos noventa. “Batalhões de elite treinados, e quem é que treina os filhos da puta?” (HILST, 2003, p.89). Essa pergunta é respondida no artigo: “the Atlacatl Battalion, an elite unit created, trained and equipped by the United States. It was formed in March 1981, when fifteen specialists in counterinsurgency were sent to El Salvador from the US Army School of Special Forces.” [3] (CHOMSKY, acesso em 09 ago. 2007). Lucius lembra de uma parte do texto: “mulheres penduradas pelos pés com os seios arrancados, a pele do rosto também arrancada.” (HILST, 2003, p.89). Apesar de compor um quadro terrível, a realidade descrita no artigo é bem pior: “Men are not just disemboweled by the Salvadoran Treasury Police; their severed genitalia are stuffed into their mouths. Salvadoran women are not just raped by the National Guard; their wombs are cut from their bodies and used to cover their faces.” [4] (CHOMSKY, acesso em 09 ago. 2007). Há uma outra referência a um outro artigo de Chomsky no trecho: “o Chomsky é um dissidente americano quanto à questão do Vietnã, lembra-se?” (HILST, 2003, p.89). O artigo, provavelmente, é Vietnam: How government became wolves do livro The New York review of books publicado em 15 de junho de 1972. Não fica claro se o trabalho de Chomsky foi, ou não, impresso por Lucius. Mas, seu pai, o banqueiro, deixa bem nítido o que pensa a respeito nas duas passagens a seguir:

viciosos, assassinos, miseráveis, e não me venha com discursos, [...], como é que você pensa que se faz fortuna, uma empresa de porte, um banco? Trabalho e sagacidade (HILST, 2003, p.92).

como é que você pode provar que são eles que penduram as mulheres pelos pés, essa besteirada toda que você repete nos seus artiguelhos [...] Chomsky ou a puta que o pariu, então você não sabe que há interesses políticos nisso tudo, há vendidos, há nojentos da esquerda radical (HILST, 2003, p.93).

Em outras palavras, o banqueiro quer dizer que o status quo precisa ser assegurado a qualquer custo. Não é possível acreditar em quem está contra o the Establishment. Chomsky descreveu em seu artigo o que pode ser feito em nome de uma democracia para poucos. No segundo parágrafo do seu texto, ele relata as razões das barbáries em El Salvador:

One was that Somoza, the dictator of Nicaragua, was losing control. The US was losing a major base exercise of force in the region. A second danger was even more threatening. In El Salvador in the 1970s, there was a growth of were called “popular organizations” – peasant associations, cooperatives, unions, Church – based Bible study groups that evolved into self-help groups, etc. That raised the threat of democracy.[5] (CHOMSKY, acesso em 09 ago. 2007).


Uma outra intertextualidade no conto é a citação, que “é a utilização de um texto, ou parte dele, dentro de outro texto. Sendo esse texto normalmente de autor renomado, é empregado como recurso ilustrativo ou argumentativo.” (TRANSTEXTUALIDADE, acessado em 04 ago. 2007&). O texto citado é o poema, a última estrofe, Une charogne, de Charles Baudelaire, que foi publicado no Figaro em 07 de fevereiro de 1864 junto com mais três poemas sob o título de O spleen de Paris. Nesse poema, Baudelaire retrata, detalhadamente, como uma carniça apodrece. Ele narra “a multiplicação na decomposição, a fecundidade na corrupção, o movimento na imobilidade, o infinito no finito; em suma, a metamorfose – isto é, a vida, no sentido mais pleno da palavra – na morte.” (MORAES, 2004, p.132). O conto pode ser lido como a vida, que é multifacetada e desordenada, oriunda da morte. Lucius, no velório de Lucas, diz que sente “a morte e não a vida escoando de mim.” (HILST, 2003, p. 86). Ele define a morte como essa “fina e fecunda, Essa madrasta que engole tudo, Essa que toma e transmuta, Essa escura e finíssima senhora, umidade, frescor, o grande ventre sem decoro recebendo o mundo, migalhas, excremento tripas teu adorado corpo luzente sem decoro.” (HILST, 2003, p.90). A morte metamorfoseia tudo menos os dentes de Lucas. “Ah... ficam intactos...” (HILST, 2003, p.90).

Com relação à “tradição cartaginesa que não permitia a separação de sogro e genro, um costume que não permitia que sogro e genro vivessem afastados.” (HILST, 2003, p.90-91), não foi encontrada na História, ou na mitologia antiga, nenhuma referência que corrobore a fala de Lucius. Entretanto, no compêndio da literatura brasileira há a peça O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues, estreada em 07 de julho de 1961, no Teatro Ginástico do Rio. O jovem Arandir, casado com Selminha, vê um homem ser atropelado. Antes de morrer, no meio da rua, o acidentado pede um beijo a Arandir. Um repórter presencia a cena e resolve ganhar dinheiro com a matéria. A parti daí, o repórter junto com um delegado de polícia transformam o último pedido de um moribundo num caso de amor entre dois homens. O repórter incita Aprígio, pai de Selminha, a dar um tiro no genro. Durante toda a estória, a platéia tem a impressão que Aprígio ama a filha como um homem ama uma mulher. Aprígio nunca pronunciou o nome do genro e quase não a visitou após o casamento. Arandir diz que sempre desconfiou do ódio que Aprígio sentia por ele, e o ciúme exagerado pela filha Selminha. Aprígio diz:

Aprígio – De você! (estrangulando a voz) Não da minha filha. Ciúmes de você. Tenho! Sempre. Desde o teu namoro, que eu não digo o teu nome. Jurei a mim mesmo que só diria teu nome a teu cadáver. Quero que morra sabendo. O meu ódio é amor. Por que beijaste um homem na boca! Mas eu direi o teu nome. Direi teu nome a teu cadáver. [...]
Aprígio – Arandir! (mais forte) Arandir! (um último canto) Arandir! (RODRIGUES, 1993, p.989).

A relação amorosa entre sogro e genro é, segundo Lucius, uma tradição cartaginesa e há uma outra estória semelhante: “um capitão do exército apaixonou-se por um jovem, tornaram-se amantes, apesar do falatório, um era casado e tinha filhas e fez com que o amante se casasse com uma delas.” (HILST, 2003, p. 91). Há a impressão que Lucius está tentando justificar e encontrar precedentes para continuar seu romance com Lucas. A temática, amor entre sogro e genro, está presente no próprio conto. Lucius não mata Lucas. Contudo, repetiu o gesto de Aprígio neste trecho: “levanto a cabeça para os céus, escuros volumosos uma imensa cara, a boca escancarada de nuvens pardas, abro minha própria boca e grito LUCAS LUCAS.” (HILST, 2003, p.89). Após esses argumentos, é concebível afirmar que o conto faz alusão à peça de Nelson Rodrigues.

Lucius repete uma fala da personagem Iago da peça Otelo de William Shakespeare: “não sou o que sou.” (HILST, 2003, p.93-94). Iago diz isso no Ato I: Cena I quando está conversando com Rodrigo. Para Linda Hutcheon há uma recontextualização dessa afirmativa. Segundo a autora:

it was to remind us that he did not intend to copy, but to recontextualize, to synthesize, to rework conventions – in a respectful manner. This intent is not unique to modern parody, for there is similar tradition in earlier centuries, even if does tend get lost in most critical generalizations. [6] (HUTCHEON, 2000, p.33).

No texto original, Iago revela para Rodrigo que é uma pessoa movida pelo interesse: “O céu é testemunha: não me move o dever nem a amizade, [...], só o interesse. Se as mostras exteriores de meus atos me traduzissem os motivos próprios do coração em traços manifestos, carregaria o coração na manga, para atirá-los às gralhas.” (SHAKESPEARE, 2000, p.13). Lucius, porém, está corroído de ciúme por Lucas: “estou inteiro úmido de cólera porque vi que os teus olhos olharam o muito [...] viril atravessando a rua e que o teu olhar foi de cumplicidade e de desejo e que os traços de teu rosto [...] são vincos pesados e solenes [...] de um reles prostituto.” (HILST, 2003, p.94). Há mais uma recontextualização da fala de Iago, do mesmo trecho já citado, é “seguindo-o, apenas sigo a mim próprio.” (SHAKESPEARE, 2000, p.13). Iago quer dizer que só está interessado em seus próprios benefícios ao servir, seguir, Otelo. Segundo Iago: “Outros [servos] há que sabendo a forma externa revelar do dever, as feições próprias, o coração conservam sempre atentos no proveito pessoal; [...], e entre eles eu me incluo, posso afiançar-vos.” (SHAKESPEARE, 200, p.12-13). Por outro lado, Lucius ao enunciar: “Te seguindo sigo apenas a mim mesmo” (HILST, 2003, p.95); ele assume sua paixão por Lucas e que o segue para encontrar-se consigo mesmo. “Porque sendo este que sou agora, devo dizer que umas cordas feitas de sangue e plasma me amarram a ti.” (HILST, 2003, p.94).

Lucius via-se como um “conceito redondo. Liso” (HILST, 2003 p.87); ou que havia uma “casca tão consistente a casca era firme” (HILST, 2003, p.87), protegendo-o do mundo; e que seu “corpo era fruto da paineira, todo fechado” (HILST, 2003, p.87). Lucius tinha um conceito de identidade essencialista. Nessa proposta, a concepção de identidade

assinala aquele núcleo estável do eu que passa, do início ao fim, sem qualquer mudança, por todas as vicissitudes da história. Esta concepção [...] tem como referência aquele segmento do eu que permanece, sempre e já, “o mesmo”, idêntico a si mesmo ao longo do tempo. [...] [Há] um eu coletivo capaz de estabilizar, fixar ou garantir o pertencimento cultural ou uma “unidade” imutável que se sobrepõe a todas as outras diferenças – supostamente superficiais. (HALL, 2000, p.108).

Ao conhecer Lucas, Lucius foge da sua prisão interior na qual estava enjaulado. “E um novo ou talvez um antigo e insuspeitado Lucius irrompe, dois escuros e contraditórios, aguçados e leves, violentos e sórdidos.” (HILST, 2003, p.88). Lucius passa a vivenciar o conceito estratégico e posicional de identidade.

Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não não [sic] são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzer [sic] ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação. (HALL, 2000, p.108).

Lucius, apesar de estar apaixonado por um homem pela primeira vez, ainda se ilude sobre si mesmo ao afirma para Lucas que “ético é descobrir-se inteiro livre como me sinto agora” (HILST, 2003, p.91). Conforme Stuart Hall, uma identidade unificada é “uma cômoda estória sobre nós mesmo ou uma confortadora “narrativa do eu”. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.” (HALL, 2002, p.13). As outras personagens masculinas não apresentaram grandes dilemas pessoais ao viverem seus antagonismos. Lucas, na carta testamento, revela: “Quando nos beijamos naquela antiqüíssima tarde, a consciência de estar beijando um homem foi quase intolerável, mas foi também um sol se adentrando na boca, e na luz azulada desse sol havia uma friez da água de fonte” (HILST, 2003, p.99). O banqueiro “sentou-se na beirada da cama. Passou a unha ao longo da minha espinha [carta do Lucas].” (HILST, 2003, p.98). Depois, o pai do Lucius pediu para tocar em Lucas e, antes de sair, trocaram um beijo. Isso não influenciou o magnata, tanto que esbravejou com Lucius:

então anos de decência e de luta por água abaixo e eu um banqueiro, com que cara você acha que eu vou aparecer diante de meus amigos, ou você imagina que ninguém sabia, crápula, canalha, tua sórdida ligação, e esse moleque bonito era o namoradinho da minha neta, então vocês combinaram seu crápulas, aquele crapulazinha namorou minha neta para poder ficar perto de você. gosta de cu seu canalha? gosta de merda? fez-se também de mulherzinha com o moço machão? Ele só pode ter sido teu macho porque teve a decência de se dar um tiro na cabeça, mate-se também seu desgraçado mate-se (HILST, 2003, p.87, grifo nosso).

O mais importante para o dono do banco era manter as aparências. Lucas tinha a impetuosidade da juventude como desculpa. Mas assim mesmo, não agüentou o julgamento social e suicidou-se. Restou a Lucius o ônus de ser diferente.

Os nomes Lucius e Lucas estão relacionados ao autor do terceiro evangelho, São Lucas. Lucius de Cirena, também “conhecido como Lucius, Lucas ou Luke, devido às diferentes línguas em que era escrito” (ROBERTO, acesso em 21 ago. 2007), escreveu o mais poético e detalhado de todos os evangelhos, num grego antigo e muito elegante. A personagem “Lucas faz História na universidade, [...] mas adora poesia, escreve poemas sobre muros.” (HILST, 2003, p.88). As duas personagens do conto, Lucius e Lucas, são um duplo por homonímia. Isso é confirmado na fala de Lucas: “Te seguindo sigo apenas a mim mesmo.” (HILST, 2003, p.95). A partir do encontro com Lucas, Lucius passa a buscar uma nova identidade. Entretanto, esse “encontro simboliza a libertação de um outro eu, ao mesmo tempo que anuncia a morte próxima – a ligação do duplo com a sensualidade e com a morte.” (BRUNEL, 2005, p.280). Lucius renova-se e reinventa-se, e Lucas comete o suicídio. “É curioso notar que a morte de certos personagens estranhos do século 19 [e até nos dias atuais] configure um desaparecimento do homossexual que se parece com as táticas pós-modernas da afirmação da visibilidade pela invisibilidade.” (MENDES, 2002, p.75). Por exemplo: no século XIX, a personagem “Elsa d’Aragon, uma carnação maravilhosa de 18 anos, [...] cuja especialidade sexual era desvirginar meninas púberes” (RIO, 2007, p.39), foi morta por Elisa em História de gente alegre de João do Rio. Quintanilha num “dia em que, levando doces para os afilhados, atravessava a praça Quinze de Novembro, recebeu uma bala revoltosa (1893) que o matou quase instantaneamente.” (ASSIS, 2007, p.35). Ele era personagem do conto Pílades e Orestes de Machado de Assis. No século XX, Eusebiozinho “vestido de noiva, com véu e grinalda – enforcara-se [...], deixando o seguinte e doloroso bilhete: “Quero ser enterrado assim.”” (RODRIGUES, 1992, p.43), no conto Delicado de Nelson Rodrigues. Há dois renomados estudiosos brasileiros que pactuam com essas táticas: um deles é Silviano Santiago no seu artigo O homossexual astucioso, em O cosmopolitismo pobre de 2004; o outro é Denílson Lopes no prefácio do livro Entre Nós, intitulado Por uma nova invisibilidade. No seu texto, Lopes argumenta: “A invisibilidade tem menos a ver com o fascínio romântico pelos marginais do que com a formação de uma subjetividade, [...] Desaparecer para reaparecer. Aparecer para desaparecer. Uma brincadeira de pique esconde.” (LOPES, 2007, p.18-19, grifo nosso). Sendo contrário ao projeto de invisibilidade, esse ensaio filia-se as propostas de Eve Sedgwick, Elaine Showalter, Leo Bersani, Guacira Lopes Louro, Luiz Mott, entre outros que rejeitam essa invisibilidade. Segundo Bersani:

Somente uma ênfase na especificidade do mesmo pode nos ajudar a evitar colaborar na tática disciplinar que nos tornaria invisíveis. Dito de outro modo, existe um “nós”. Mas na nossa ansiedade em convencer a sociedade heterossexual de que somos apenas uma invenção malévola e de que nós podemos ser, como eles, bons soldados, bons pais e bons cidadãos, nós estaremos nos suicidando. Ao apagar nossa identidade não fazemos mais do que reconfirmar nossa posição inferior num sistema homofóbico de diferenças. (apud MENDES, 2002, p.74).

Antes, o poeta foi expulso da República por Platão. Agora, a pós-modernidade quer tornar o que é diferente invisível, mesmo que seja pelo suicídio.

O narrador do conto assegura que a “carne de Lucius antes era mansa e tépida, brioso corpo de antes tão educado respondendo rápido a qualquer afago, de mulheres naturalmente, ah sim naturalmente” (HILST, 2003, p.91, grifo nosso). Os adjetivos manso, tépido, brioso e educado indicam que para um homem reagir prontamente e naturalmente a uma mulher, ele, seu corpo, precisa ser treinado para tal. E é aqui que o sistema educacional entra.

As tecnologias utilizadas pela escola alcançam, aqui, o resultado pretendido: o auto-disciplinamento, o investimento continuado e autônomo do sujeito sobre si mesmo. Com a cautela que deve cercar todas as afirmações pretensamente gerais, é possível dizer que a masculinidade forjada [...] almejava um homem controlado, capaz de evitar “explosões” ou manifestações impulsivas e arrebatadas. O homem “de verdade”, nesse caso deveria ser ponderado, provavelmente contido na expressão de seus sentimentos. Conseqüentemente, podemos supor que a expressão de emoções e o arrebatamento seriam considerados, em contraponto, características femininas. (LOURO, 2007, p.22).

Há então uma reafirmação do que já foi discorrido sobre a identidade. Ela é “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.” (HALL, 2002, p.13). Mas como ficou Lucius ao conhecer Lucas? Pálido e dizendo frases emaranhadas. Depois, sentiu nojo das pessoas ao ler o artigo de Chomsky. Citou um poema de Baudelaire, apesar de achar que escrever sobre poesia era uma coisa complicada. Passou a demonstrar certo desprezo pelas mulheres: “Finíssimas jovens mulheres, perfumadas lânguidas, transparências sombreando coxas, tetas, um olho na minha boca, outro no dinheiro do meu velho.” (HILST, 2003, p.92). Mostrou sensibilidade e emoção ao defender o texto de Chomsky: “pai, será que você não percebe que um homem lúcido treme de furos, de cólera, de nojo quando sabe que um artigo desses vem de fonte limpa.” (HILST, 2003, p.93). E finalmente, revelou puro êxtase poético ao narrar sua felação feita em Lucas: “Viscoso. Cintilante. Pela primeira vez o meu olhar encontrava a junção do nojo e de beleza [similar ao poema Une Charogne]. Pela primeira vez em toda minha vida, eu, Lucius Kod, 35 ano, suguei o sexo de um homem.” (HILST, 2003, p.96). Por outro lado, Lucas, na carta testamento, escreveu: ”Antes da sombra, Lucius, quero dizer da dor de não ter sido igual a todos.” (HILST, 2003, p.98). Lucas beijou Lucius, “e beijei tua boca como qualquer homem beijaria a boca do riso, da volúpia” (HILST, 2003, p.99, grifo nosso), e o banqueiro pela volúpia. Já o pai de Lucius parecia querer tomar o lugar de Lucius: “vai ter tudo comigo, moço. Afaste-se de meu filho.” (HILST, 2003, p.98). As três personagens interagiram com o meio fugindo do pré-estabelecido. Esse conto pode ser comparado ao filme Teorema de Píer Paolo Pasolini. O anjo seria o Lucas, o industrial se transformaria no banqueiro e o filho adolescente caberia a Lucius. Mas diferentemente do filme, o anjo morre e o industrial não abandona tudo como São Francisco de Assis. Todavia, Lucius é apresentado à diversidade da sensualidade humana como Pietro, o filho adolescente.

A última intertextualidade do conto é o final da carta de Lucas: “Parodiando aquele outro: tudo o que é humano me foi estranho.” (HILST, 2003, p.103). Lucas parodiou o dramaturgo e poeta romano Terêncio (185? AC. – 159AC.). Ele, na peça Heautontimorumenos (O carrasco de si mesmo), escreveu o famoso aforismo: “Sou humano, e nada do que é humano me é estranho.” (MATTA, acesso em 10 ago. 2007). Essa frase é a própria formula do humanismo, que é um “conjunto de doutrinas fundamentadas de maneira precípua nos interesses, potencialidades e faculdades do ser humano, sublinhando sua capacidade para a criação e transformação da realidade natural e social” (HOUAISS, 2001, p.1555). Charles Baudelaire utilizou o título dessa comédia de Terêncio para um dos seus poemas, “mas o assunto pertence a Lês soirée de Saint-Pétersbourg (1821), de Joseph de Maistre.” (BAUDELAIRE, 1985, p.602). Na penúltima estrofe do poema há um belo encontro dos opostos. Estes pares estão próximos à realidade do leitor: “Je suis la plaie et le couteau! / Je suis le souffet et la joue! / Je suis les membres et la roue, / Et la victime et le bourreau!” [7] (BAUDELAIRE, 1985, p.308). Há uma nota explicativa, feita por Baudelaire, sobre o último verso dessa estrofe que vale a pena ser citada porque concerne ao relacionamento entre Lucius e Lucas:

Creio já haver escrito em minhas notas que o amor se assemelha muito a uma tortura ou a uma operação cirúrgica. Mas esta idéia pode ser desenvolvida de maneira mais amarga. Mesmo que os dois amantes estejam muito apaixonados e muito cheios de desejos recíprocos, sempre um dos dois será mais calmo, ou menos possesso, do que o outro. Aquele ou aquela é o operador ou o carrasco; o outro é o paciente, a vítima. (Trad. de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira) (BAUDELAIRE, 1985, p.603).

Quem foi a vítima? Lucas porque sofreu um atentado violento ao pudor e depois se matou? Ou Lucius que carrega todo o peso de uma relação homoerótica revelada? “Caras graníticas, ódio medo e vergonha, palavras que vêm de longe evanescentes mas tão nítidas como estiletes, palavras de supostos éticos Humanos: Constrangedor Louco Demente Absurdo Intolerável” (HILST, 2003, p.86). E o algoz? Lucius por desejar Lucas? Ou Lucas por ser voluptuoso? A única assertiva é que Lucas também se apropriou do título da comédia de Terêncio, quando, literalmente, foi O carrasco de si mesmo.

Concluindo, os elementos pós-modernos desse conto são relevantes para caracterizá-lo como uma narrativa pós-moderna. Desde o título, no qual há uma provável transposição da premissa do nada fez-se a luz. Há a alusão aos artigos The crucifixion of El Salvador e Vietnam: How government became wolves de Noam Chomsky; e à peça Beijo no asfalto de Nelson Rodrigues. É citada a última estrofe do poema Une charogne de Charles Baudelaire com a função de dialogar com a morte de Lucas, vivenciada por Lucius. Existe a recontextualização da fala da personagem Iago, da peça Otelo de William Shakespeare. O texto aborda o conceito de identidade nas personagens masculinas, o duplo Lucius / Lucas, e a tática de afirmação da visibilidade pela invisibilidade na morte de Lucas. Além de descrever como Lucius desvencilhou-se de um processo castrador para experimentar um novo tipo de erotismo e novas sensações. E por último, o uso do título da comédia de Terêncio por Lucas. Encontram-se, também, passagens de prosa poética e os sete poemas de Lucas, que não foram considerados matéria de estudo desse ensaio por delimitação do tema escolhido. Para finalizar, será citado um fragmento do texto A morte e o infinito: entre Michel Deguy e Charles Baudelaire, por sintetizar um sentimento que permeia o conto: “cada poeta, cada artista, cada crítico, cada tradutor, [cada “Lucius”, cada “Lucas”] [...] no tempo-de-agora, se reencontra só, aquém e além das promessas da morte, em distante proximidade de si, da forma, do mundo – de seu infinito” (MORAES, 2004, p.138, grifo nosso).

Notas

[1] Que o Nada conosco é falsário;
Que tudo, a morte até, nos mente,
Que desde sempre e eternamente
Talvez nos seja necessário
Charles Baudelaire, O esqueleto lavrador (BAUDELAIRE, 1985, p.349).

[2] O termo literatura pós-moderna é usado para descrever certas tendências na literatura após a 2ª. Guerra Mundial. A literatura pós-moderna é tanto a continuação da experimentação defendida pelos escritores do período moderno (a confiança total, por exemplo, na fragmentação, paradoxo, narradores questionáveis) quanto à reação contra idéias Iluministas implícitas na literatura moderna. A literatura pós-moderna, como o pós-modernismo no conjunto, é difícil para se definir e há pouco acordo nas exatas características, no espaço, e na sua importância. Entretanto, as características unificadoras coincidem frequentemente com o conceito de Jean_François Lyotard de “meta-narrativa” e “pequena-narrativa”, o conceito de Jacques Derrida de “jogo” e o conceito de Jean Baudrillard de “simulacro”. Por exemplo, em vez da procura moderna para o significado num mundo caótico, o autor pós-moderno se abstém, frequentemente por brincadeira, da possibilidade de significado, e a novela pós-moderna é frequentemente uma paródia dessa procura. Essa desconfiança nos mecanismos totalizadores estende-se mesmo ao autor; assim escritores pós-modernos, frequentemente comemoram o acaso sobre a arte e empregam a meta-ficção para minar o controle exclusivo da voz do autor (o controle de somente uma voz). A distinção entre alta e baixa cultura é atacada igualmente com o emprego do pastiche, a combinação de elementos culturais, incluindo assuntos e gêneros que não eram apropriados, previamente, para a literatura. A lista de autores pós-modernos varia frequentemente; os seguintes são alguns exemplos comuns: Thomas Pynchon, John Barth, Kurt Vonnegut, Joseph Heller, Salman Rushdie, Italo Calvino, Donald Barthelme, Don Delillo, and Umberto Eco.

[3] O batalhão Atlacatl, uma unidade de elite, criada, treinada e equipada pelos Estados Unidos. Ele foi formado em março de1981, quando quinze especialistas militares em atividades contra rebeldes foram enviados à El Salvador da Escola de Forças Especiais do Exército dos Estados Unidos.

[4] Homens não tinham só as entranhas arrancadas pela polícia do tesouro salvadorenho; seus pênis eram cortados e socados em suas bocas. As mulheres salvadorenhas não eram só estupradas pela guarda nacional; seus úteros eram cortados dos seus corpos e usados para cobrir seus rostos.

[5] Um era Somoza, o ditador da Nicarágua, que estava perdendo o controle. Os Estados Unidos estavam perdendo uma base principal para seus exercícios de força naquela região. O segundo perigo era muito mais ameaçador. Em El Salvador, nos anos 70, havia o crescimento do que eram chamadas de “organizações populares” – associações de camponeses, cooperativas, sindicatos, Igreja – fundamentada em grupos de estudos da Bíblia que evoluíram para grupos de ajuda mútua, etc. Isso elevou a ameaça à democracia.

[6] isso nos lembra que não há a intenção de copiar, mas de recontextualizar, sintetizar, retrabalhar convenções de uma maneira respeitosa. Essa intenção não é restrita à paródia moderna, há uma tradição semelhante nos séculos passados, ainda que ela tenda a perder-se na maioria das generalizações criticas.

[7] Eu sou a faca e o talho atroz! / Eu sou o rosto e a bofetada! / Eu sou a roda e a mão crispada, / Eu sou a vítima e o algoz! (BAUDELAIRE, 1985, p.309).

ARTE DO HOMEM SUJO NUM PAÍS FEDIDO

Poema Sujo - um fragmento; Justiça suja – arte do homem sujo num país fedido
“ E são coisas vivas as palavras
e vibram da alegria do corpo que as gritou
têm mesmo o seu perfume, o gosto da carne
que nunca se entrega realmente
nem na cama
senão a si mesma
à sua própria vertigem
ou assim falando ou rindo
no ambiente familiar
enquanto como um rato
tu podes ouvir e ver
de teu buraco
como essas vozes batem nas paredes do pátio vazio
na armação de ferro onde seca uma parreira
entre arames
de tarde
numa pequena cidade latino-americana.” (Ferreira Gullar)

Poeta pouco lido, pouco estudado nas universidades brasileiras, cronista da Folha de São Paulo, ensaísta maior, crítico da literatura, enfim, um VIVO pensante neste país devassado pela sujeira arteira do sujeito politiqueiro, pobre de espírito e rico em escatologias diversas... Todos soltamos puns, eu sei! Mas daí a gulosos peidantes, isso sim, sanguessugas, sujos, há uma enorme diferença! Não é à toa que estão lançando a música inédita dos Mamonas, 10 anos depois de sua morte, cujo título é, apesar de grosseiro, tão próprio ao momento de identidade política nacional: “Não Peide Aqui, Baby”, uma versão chula de Twist and Shout, gravado há 50 anos pelos Beatles. O título é um pedido sufocado de todos que não agüentam mais tanto fedor, tanta sujeira!
No seu artigo da Folha de São Paulo, de Domingo, dia 06/08, Ferreira Gullar disse que “como cidadão, tenho necessidade de entender de que modo a justiça é feita, mesmo porque ela é o fundamento da sociedade. Quando a Justiça falha, o convívio social fica ameaçado pela arbitrariedade.” Estava se referindo ao modo pelo qual um advogado de defesa pode se sustentar, por deformação profissional, busca de notoriedade ou entendimento equivocado de seu papel, com honrosas exceções, atuando na prática como inimigo da Justiça.
Neste país macunaímico, a punição não pode ser entendida como vingança contra o transgressor e, sim, como a necessidade de fazer valer as normas do convívio social, já que, sem elas, voltaríamos à barbárie. A reforma do sistema penitenciário é uma necessidade que todos reconhecem, mas, seja por que razão for, tem sido sempre adiada ou empreendida sem a urgência que se impõe. O aumento da criminalidade tem levado muitos setores da opinião pública a reclamar da frouxidão de nossa legislação penal e do procedimento dos juízes.
Absurdo mesmo foi a decisão do Supremo Tribunal Federal que estendeu o benefício de progressão da pena a condenados por crimes hediondos. Como conseqüência dessa decisão, criminosos de indiscutível periculosidade, reincidentes, muitos deles, na prática de crimes graves que vão do homicídio à chefia do tráfico de drogas, serão em breve postos em liberdade, já que alguns deles completaram um sexto da pena. Conforme o noticiário dos jornais, esses criminosos já acionaram seus advogados para obter o benefício. Quem sabe, em breve, estarão de volta às ruas Fernandinho Beira-mar e Marcola, parafraseio Ferreira Gullar. Tudo isso gera na consciência do cidadão a descrença na Justiça e, em muitos, a certeza de que, em nosso país, o crime compensa. Ouvi, dia desses, de um sujeito esclarecido, estudado e pensante, que tinha vontade de assaltar um banco. Seu plano veio inteiro como vem uma poesia. Eu perguntei: “E daí?” – curioso e ansioso pela resposta. Não demorou muito para me dizer que precisaria de mais três perfeccionistas para que o plano desse certo. Sorrimos.
Na formidável tragédia de Sófocles, Rei Édipo, a par da simbologia psicanalítica identificada por Freud, há uma outra: a da irrenunciável necessidade de que a justiça seja feita. Tebas só se livrará da peste quando o responsável pela morte de Laios for identificado e punido. Sófocles nos ensina que, quando a Justiça falta, a comunidade humana adoece. O Brasil está doente, todo doente, tripas carcomidas, cocô escorrendo pelas pernas do povo contaminado pela diarréia bacteriana crônica dada de presente pelos governantes. Temos que rezar pra Omulu e dar sangue/carne pra Exu. Só assim, sobreviveremos.