domingo, 4 de maio de 2008

LETRAS NA VITRINE

LETRAS NA VITRINE
Sarita Erthal
(mestranda em Cognição e Linguagem – UENF)

I – Da magia ao mercado

Com influência do capitalismo, as artes em geral sofreram um abalo em suas significações. Anteriormente a esta época em que tudo é transformado em mercadoria, o artista se expressava da forma que melhor lhe convinha. Antes ainda, a arte mágica
[1] traduzia as necessidades do homem que, imitando a natureza, foi descobrindo como se usufruir dela e dominá-la. Para este homem, a arte se resumia a um “instrumento mágico, uma arma da coletividade humana em sua luta pela sobrevivência” (Fischer, 2002: 45).
Será que é possível afirmar que ainda existe alguma magia relacionada à arte? É sabido que a arte produzida na atualidade não é “pura” como a do homem pré-histórico e dos que vieram alguns anos depois dele, desprovida de intencionalidade de mercado, voltada apenas para necessidades antropológicas. Ao contrário do que ocorria, mesmo após sua evolução, já com a capacidade de compreender, suportar e transformar a realidade em que vivem, muitos artistas de hoje – desde o advento do capitalismo – vêem-se atados ante sua imaginação criadora em prol da preocupação de agradar ao público com seus trabalhos (antes do capitalismo, raras vezes senhores ou reis faziam exigências com relação a esse tipo de trabalho, como se fossem encomendas). Isso faz com que o valor de certos tipos de manifestações artísticas seja questionado e criticado por muitos. Antes de agradar a si próprio, o artista vive o impasse da aceitação do mercado. Sua realização pessoal seria a conseqüência daquela. “Agradar ao público” seria o objetivo crucial daquele; essa não concretização acarretaria o fracasso. Tal dilema tanto incomoda alguns criadores que serve de mote para determinadas obras.
Sob este prisma, a cultura de massa tem tomado um espaço considerável nas artes e mudado as formas de fazê-la e apreciá-la. O capitalismo precisa da cultura de massa para sobreviver, visto que ela compõe grande parte da população mundial. Muitos artistas se vêem, portanto, obrigados a criar algo que satisfaça aos interesses deste público. Em um mundo manipulado por relações comerciais que objetivam o lucro e a riqueza, a arte é mais um objeto a ser vendido e consumido, e para que se enquadre nos padrões de competitividade, é preciso que agrade ao maior número possível, e que as atinja de modo também massificante.
A energia elétrica e, conseqüentemente, a tecnologia foram os grandes responsáveis pela propagação da arte de massa. Eric Hobsbawm (1995: 192) atribui ao cinema a grande responsabilidade da “fertilização” das artes de vanguarda com as de massa: “em fins da década de 1930, para cada britânico que comprava um jornal diário, dois compravam um ingresso de cinema”. Alain Touraine (1994: 162) diz que “o cinema destruiu a distância que as grandes obras do teatro e da música criavam, e seu objetivo principal é a integração do indivíduo na multidão”. E apesar de Leo Lowenthal (in Tourine, 1994: 162) reconhecer a presença de “um sabor de felicidade” no cinema e na cultura de massa, “os filósofos da Escola de Frankfurt vêem nesta cultura instrumento de repressão e não de sublimação, de escravização, portanto”. A alienação, característica da sociedade de consumo fez com que o homem trocasse a razão pela instrumentalidade. O pensamento racional e os sentimentos de piedade e humanidade foram desaparecendo e sendo substituídos por uma subjetividade indomável cada vez mais atrelada ao capitalismo. Touraine (op. cit.: 165) considera atual a influência da Escola de Frankfurt, pois:
uma sociedade dominada pela produção, pelo consumo e pela comunicação de massa tende a reduzir os indivíduos a preencher papéis que outros definiriam para eles, e esta forma moderna de dependência, muito diferente daquelas das sociedades tradicionais que submetiam o indivíduo a regras e ritos, é igualmente temível mas é preciso acrescentar que é menos exigente e que a imagem da sociedade-máquina, sujeita a determinantes estritos, corresponde mais a representações antigas da ciência do que a suas expressões modernas.

Mais tarde, veículos de comunicação de massa, como o rádio e a televisão – em especial, o último –, tornam-se grandes aliados para a propagação de uma “nova” cultura por estarem presentes na grande maioria das residências. Mesmo com a favorável tecnologia, não seria possível alcançar o objetivo capitalista se o que fosse veiculado não agradasse ao público. Para isso era necessário tratar de temas que despertassem o interesse e fizessem com que as pessoas parassem diante da TV, sintonizassem o rádio, comprassem revistas e lessem os jornais ou os livros que se enquadravam em “padrões vendáveis”.
Infinitos são os temas tratados pelos veículos de comunicação, porém dois deles têm estado em evidência na contemporaneidade: a violência e o sexo. Estes tópicos são recorrentes na cultura de massa, como se pode notar em músicas, filmes e telenovelas voltadas para o público contemporâneo. A aceitação do sexo como tema estaria no fato de causar satisfação própria, estimulando os desejos de vivenciar alguma situação; por outro lado, a violência agradaria por acometer o outro, como se fosse algo inatingível a quem consome este tipo de arte. Em ambos os casos, no sujeito, é gerado certo prazer. Pode ser que haja, também, uma repulsa, mas neste caso, os artistas e propagadores desses produtos tendem a ser cautelosos para que não aconteça o afastamento do consumidor. Dificilmente a repulsa acomete o devorador da arte de massa.
Ernst Fischer (2002: 249) imagina como seria a arte perante uma sociedade próspera e altamente diferenciada, alegando que não há por que temer caso ocorra o seu empobrecimento, e ao arriscar um palpite quanto ao futuro, diz que “nosso atual gosto pelo grotesco e pela bufonaria na arte, pode ser mais do que a mera conseqüência da justaposição do cômico ao terrível, realizada pela vida moderna, pode ser o prenúncio de uma ressurreição da comédia”. Ele conclui que se houver aí a significação crítica e o riso que destrói, essa pode ser uma forma de reflexão da alegria da liberdade humana, do espírito dessa alegria (Idem). Touraine (1994: 171) acredita que a crítica social e política das idéias de Marcuse “corre o risco de negligenciar o essencial, que se situa no âmbito cultural”:
A cultura moderna é antes de tudo dessublimante; ela conduz a uma sexualidade completamente imersa no sexo e na busca da satisfação imediata e direta das necessidades. Todo distanciamento, toda “bidimensionalidade” tendem a desaparecer. Isso faz triunfar o instinto de morte na sociedade industrial e destrói a arte. “O princípio do prazer absorve o princípio da realidade, a sexualidade é libertada (melhor, liberada) sob formas socialmente construtivas. Esta noção implica que há formas repressivas de dessublimação”. (Idem)

A arte mágica, como se vê, tem se distanciado dos homens e vem sendo esmagada pela arte de consumo, do lucro, de massa. Para que esse cenário se complete, a figura do mercador cultural surge como a esperança do artista anônimo em alcançar o seu reconhecimento. Vale salientar que ser reconhecido, para ele, significa ser vendido, nem que, para isto, a efemeridade contemporânea varra seus vestígios da memória do consumidor em pouquíssimo tempo, desde que deixe um bom crédito que lhe garanta o futuro.

II – A literatura e a massa

É certo que a televisão é a campeã em termos de propagação dos temas citados anteriormente, porém escritores considerados da alta literatura também se utilizam deles em grande proporção em seus trabalhos. O efêmero, o agora e o “eu” fazem parte desta escrita assim como experiências cotidianas que, adicionadas ao imaginário do escritor, geram uma obra espelhada em questões que são atuais ou, até mesmo, afligem o homem do nosso tempo. Se questões como a violência – física ou não – e o sexo são recorrentes, Rubem Fonseca é um dos escritores contemporâneos que aborda essa temática com peculiar brilhantismo, somando-a ao grotesco, ao mundo da sobrevivência, à problemática social e urbana sem qualquer preconceito ou encobrimento. Caio Fernando Abreu carrega em sua obra um altíssimo teor social, sua visão deixa transparecer valores e ideologias que primam pela liberdade individual, tanto no que diz respeito à política quanto ao sexo.
Therezinha Barbieri (2003) busca estabelecer traços comuns à narrativa brasileira dos anos 70, 80 e 90 dialogando com a diversidade característica do mundo atual, em que a veiculação da cultura é feita predominantemente pela mídia. Destaca, portanto, alguns itens relevantes para a compreensão desta literatura. São eles: a profissionalização do escritor, a apropriação de elementos reais e a comutação entre História e ficção.
A profissionalização do escritor e a conseqüente preocupação com o leitor revelam que já não basta, como forma de repercussão, o prestígio alcançado por uma obra pelo simples boca-a-boca feito por leitores especializados. O fato de ter sua obra não somente vendida, mas bem vendida, (ou, quem sabe, um best seller) é o objetivo final de quase todo artista. Seria este o meio de ele sentir que a aceitação do mercado funciona como um termômetro para a qualidade de seus trabalhos? Há como afirmar que a qualidade literária pode ser medida pela quantidade de venda de um livro em face de fenômenos mercadológicos que conquistam e abarcam aqueles que admiram a cultura de massa? Por ser constituída de um grande público, esta classe é o alvo principal dos mercadores culturais, aqueles que visam aos negócios, independentemente da qualidade da obra. Porém, “escrever significa entrar na disputa de um lugar no mercado independentemente da vontade explícita do autor” (Barbieri, 2003: 30). Silviano Santiago (in Barbieri, Ibidem: 39) diz quanto à coincidência da popularidade com a qualidade da obra que:
não é difícil imaginar qual é o ideal do escritor dos anos 80: bom contrato, boa publicidade, boa vendagem. De quebra, boa qualidade. Para alguns críticos mais impertinentes, isso é pouco. Para os próprios escritores, sempre mais afinados com o tempo do que o crítico, isso é suficiente para definir um novo perfil do escritor e da obra literária no Brasil.

Rubem Fonseca é um exemplo de escritor inserido no mercado, quando se trata da profissionalização do autor. Ele próprio aborda essa questão em O caso Morel, quando Magalhães pede a Paul que escreva um livro:
“Paul”, disse Magalhães, dramaticamente, “eu dou toda a liberdade para você fazer o que quiser. O mundo só pensa em sexo, tudo é sexo, regime para emagrecer, cirurgia plástica, cosméticos, moda, cultura, religião, política, poder, ciência, arte, comunicação, está tudo a serviço do sexo!”
“E o que eu tenho com isso?”
“Eu pago bem (...).” (Fonseca, 1995: 62).

Barbieri (op. cit.: 29) ressalta como, em Bufo & Spallanzani, Rubem Fonseca ironiza a profissionalização da escrita: “eu não sou funcionário público, como o Sr., só ganho se trabalho, meu livro novo está muito atrasado, [...] precisava escrever um Bufo & Spallanzani a cada dois anos”. Quando se trata de seduzir o leitor, ele diz:
Voltei para o quarto e voltei a escrever Bufo & Spallanzani. [...] “Não inventa, por favor. Você tem leitores fiéis, dê a eles o que eles querem”, dizia o meu editor. A coisa mais difícil para o escritor é dar o que o leitor quer, pela razão muito simples que o leitor não sabe o que quer, sabe o que não quer, como todo mundo; e o que ele não quer, de fato, são coisas muito novas, diferentes do que está acostumado a consumir. (FONSECA, 1985: 170)


O intercâmbio intersemiótico é outro ponto que Barbieri (op. cit.: 33) destaca como decorrência da tentativa do escritor de inserção da sua obra no mercado. Dialogando com outros meios de comunicação, muitas vezes têm-se “a impressão de assistir a atores que representam, em vez de acompanhar personagens em processo de autodesvelamento, específico da narrativa literária”. Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu (2003), é uma obra carregada de jogos intertextuais como literatura, cinema e música. Caio, desse modo, ficcionaliza elementos reais ao inseri-los em seu texto. A música considerada de Dulce Veiga no referido romance é a canção Nada além, composta em 1941, por Custódio Mesquita e Mário Lago.
O permeio entre ficção e História também é destacado pela crítica como forma de “ampliar o espectro de leitores e de transformação qualitativa da linguagem romanesca” (Barbieri, 2003: 35). O que Caio (op. cit.: 37) faz com especial destreza: “Do rádio saíam os primeiros acordes da Voz do Brasil”, e ainda: “Nas paredes que eu limpara de todos os vestígios de Lidia – Che Guevara, John Lennon, Charles Chaplin – havia apenas um poster gigantesco, quase dois metros de largura” (Ibidem: 40).
O artista luta por mais espaço buscando se diferenciar entre os vários produtos da cultura de massa, recusando a padronização e valorizando sua voz, sem deixar de dialogar profundamente com esta cultura (Barbieri, op. cit.: 35). O fato de produzirem obras com a temática que agrada às massas não faz de Rubem Fonseca e Caio Fernando Abreu escritores de menor valor. Pelo contrário. Eles se sobressaem justamente por terem uma habilidade especial de expressar esses mundos e criticar, denunciar uma determinada realidade social.
Sob esse aspecto, a literatura de Caio discute problemas da experiência humana e conflitos sociais que acometem, de certa forma, a realidade ou o imaginário das pessoas. Não é pelo favorecimento da temática do sexo ante a sociedade de massa que o escritor trata desse tema com tanta freqüência, discorrendo de forma tão natural e sem limites. Os textos de Caio possuem, antes de tudo, um teor crítico que nos permite uma leitura de desabafo ou muitas vezes desgosto. O texto ficcional cria um mundo a partir de um outro e faz com que olhemos de outra forma para a realidade da qual o texto saiu
[2].
Gilda Bittencourt (1999: 85) diz que a coletânea O ovo apunhalado (Abreu, 2001) representa artisticamente uma sociedade corrompida pela era do capitalismo, da desumanização, da exploração do homem pelo homem, dos quais decorrem a formação proliferada de sujeitos solitários e coisificados. Para ela, na obra de Caio, “são mostrados igualmente os mecanismos perversos de apropriação do sistema para criar valores artificiais a serem cultivados como positivos pela massa e consumidos como mercadoria pela sociedade” (Idem). Esses “valores artificiais” são criticados peloo escritor, alertando para os riscos que uma sociedade pode ter devido à cultura massificada.
Na coletânea Morangos mofados (Abreu, 2005), o homoerotismo é a temática de muitos contos. Abordando este tema, colocando a linguagem considerada vulgar no mesmo plano da culta, Caio mostra o lado oposto dos padrões morais. Seus personagens são tanto heterossexuais como homo e bissexuais e suas características são bastante diversificadas: amor, ódio, movimento, fala e atos são singulares em cada um. Muitos deles vivem isolados, carregados da subjetividade que tem marcado a literatura brasileira contemporânea.
Alexandre Jairo Marinho Moraes (2002: 19-20) acredita que os textos de Rubem Fonseca e Caio Fernando Abreu se entrecruzam no modo como resgatam o presente e que “perfazem um mapa e este roteiro certamente é o dos sobreviventes e o dos pactários”
[3] e continua dizendo que eles fazem uma literatura que:
provocava uma diluição dos paradigmas e formas comuns ao restante da literatura então produzida. O brutalismo, presente na obra de Rubem Fonseca, encena a transformação dos paradigmas modernos de gestos e subjetividades, sobretudo da realidade brasileira, ainda que possamos ver uma espécie de generalização dos riscos de sobrevivência nas sociedades “pós-industriais” – muitíssimo mais nas menos industrializadas – e da imprevisibilidade tão característica destes nossos tempos.

O crítico ainda afirma que “a miséria e uma espécie de brutalização e/ou banalização do homem violento e da atrocidade não são apenas um gosto pelo espetáculo sedutor da violência e por uma espécie de encontro com o grande público consumidor da ficção servida às massas” (Ibidem: 21-22). E, continua dizendo que, ao contrário:
a violência (e sua generalização) não encontra no corpo apenas a sua forma explícita. Rubem Fonseca encena os diversos tipos de violência. O brutalismo e os conceitos de real que tenta desvendar e criar são produtos de um homem inserido na imprevisibilidade e na brutalidade de um tempo e suas matrizes, ou seja, nos circuitos de comunicação em ‘pontos nodais’ de sua eficácia e, simultaneamente, de sua insuficiência. (Idem).

O sentido da violência e a genealogia do banal marcam a obra de Rubem Fonseca. Assim, Alexandre Moraes (op. cit.) pensa que aquele escritor marca sua obra com uma “condição pós-moderna” recheando seus trabalhos com a insegurança do sujeito, a diluição dos paradigmas modernos e criando contradições, identidades, subjetividades e práticas sociais.
Em Caio, o brutalismo não é tão evidente como em Fonseca, mas podem-se notar diversos tipos de violência em suas obras. No entanto, ela está camuflada em uma ironia fina que se alastra em seu texto.
As literaturas de Caio Fernando Abreu e Rubem Fonseca põem à tona os grandes problemas da condição histórica em que estão inseridas. Moraes (Ibidem: 23) fala da morte e da “perda do sujeito moderno” como tema conseqüente desse contexto real:
Em Caio, a morte do sujeito é tematizada como forma e fluxo de um olhar que percorre o corpo e seus órgãos, o corpo e seus desdobramentos e sentidos multidirecionados, quer dizer, a morte do texto de Caio Fernando Abreu, não diz respeito ao corpo e seu imediatismo apenas, mas ao corpo e suas ligações, filamentos que se espraiam por toda a superfície de criação subjetiva socialmente elaborada. O corpo inunda o texto, sexualiza e torna a metafísica do corpo uma possibilidade sempre entreaberta, sempre disponível ao consumo do sujeito.

É o que Fischer (2002: 226) caracteriza como uma “realidade sem perspectiva, valor ou medida”; e exemplifica com o romance Le Voyeur de Robbe-Grillet que “representa a quintessência do método que Nathalie Sarraute enxergou em Proust”:
as pessoas não passam de meros objetos entre outros objetos, um assassinato não significa mais do que a venda de um relógio, um crime tem tanta importância como o barulho de uma gaivota no mar, um acontecimento não significa mais do que um sonho confuso e a falsa evidência de um testemunho. (Idem)

Uma leitura superficial de Rubem e Caio mostraria um mundo violento, personagens sem sentido que vagam pela cidade sem qualquer paradigma, perdem seu corpo em troca de prazeres e momentos de entrega sôfrega em que a banalidade reinaria ao longo de suas páginas. O leitor da cultura de massa se sentiria satisfeito e completo por ter em tais textos o que por vezes não é exibido pela televisão. Esta pode até insinuar algumas situações e cenas que só seriam finalizadas pela imaginação, malícia e vivência de quem a assiste. A literatura da qual tratamos usa, com certa freqüência, cenários e tipos que poderiam ferir este telespectador, caso fossem televisionados do mesmo modo em que são narrados. A televisão busca trazer à tona as utopias da maioria da população e, para tal, mostra o produto pronto e acabado: basta ao sujeito deglutir o que consome. A imaginação não precisa ser construída, os personagens têm carne e osso, voz e movimento.

III – Dupla leitura

Caio Fernando Abreu e Rubem Fonseca, sob um primeiro olhar, mostram textos cujo núcleo temático gira em torno dos temas mais consumíveis na atualidade, como já dissemos, a violência e o sexo. Porém, com um pouco mais de cuidado, percebemos que “a trama policial não está a serviço apenas da curiosidade gerada pelo desvendamento de um mistério e o enredo perpassado por situações eróticas não pretende somente prender a atenção do leitor ávido por este tipo de assunto” (Figueiredo, 200-[?]).
Essa vertente da literatura marcada pela ambigüidade nos propósitos e por um estilo que se propõe a trabalhar a multiplicidade de códigos é analisada por Vera Follain de Figueiredo (op. cit.). A pesquisadora afirma que ao unir composições populares que fogem da mesmice à elaboração de um desenredo, escondendo códigos filosóficos, culturais e semióticos, “recupera-se o desfrutável, oferecendo uma dupla leitura. Uma que permite ao leitor comum o divertimento de uma superfície e outra que exige do leitor especializado a astúcia de ir além das facilidades aparentes”.
Desse modo, o escritor tenta se fazer presente ante o mercado enquanto se esforça para manter viva “a” literatura. A linguagem vulgar muitas vezes empregada por Caio e Rubem Fonseca, atrelada à superficialidade que o leitor comum consegue obter em suas obras, funciona como um artifício para não deixarem morrer a alta literatura, na tentativa de atingirem a um público maior. O diálogo entre Paul Morel e Ismênia retrata o dilema do artista com relação a sua produção:
Toda arte acabou ou só essa que agente faz?
Acabou tudo. Kunst ist überflüssig. Acabou tarde.
É. Nós deveríamos fazer outra coisa, menos inútil. Precisamos fazer uma arte que realmente atinja o povo. O povo precisa da arte.
O povo é influenciado por críticos e connaisseuurs de merda. No Louvre há sempre uma multidão de idiotas olhando reverentemente a Vênus de Milo (Fonseca, 1995: 49).

Apenas por esta frase, “precisamos fazer uma arte que atinja o povo”, poderíamos dizer que há interesse em alcançar um público mais numeroso. Não parece recompensador, portanto, produzir arte para as pessoas que admiram a alta cultura. Recompensador, aqui, não se refere à satisfação do ego cheio de elogios e aplausos como por ter uma obra pendurada em uma parede fria de um museu, cercada por olhos cultos que param diante dela com os braços para trás, contemplam e passam para a próxima. Atingir o povo significa também obter lucro, ter um público enlouquecido e alienado sobre questões culturais que para ele são uma grande besteira. A frase seguinte, “o povo precisa da arte”, põe em pauta a preocupação com a questão social. Em meio à pobreza, desigualdades, preconceitos, violência de todo tipo que circundam o homem contemporâneo, a arte poderia ser uma válvula de escape, uma forma de fazer esquecer, pelo menos por alguns momentos, o dia-a-dia angustiante da população em geral. “O povo” se refere à grande fatia populacional, àqueles que não têm acesso à alta cultura, às vanguardas, mas que nem por isso perdem o direito ao entretenimento.
Uma personagem de Rubem Fonseca diz:
O escritor é vítima de muitas maldições, mas a pior de todas é ter de ser lido. Pior ainda, ser comprado. Ter de conciliar sua independência com o processo de consumação. Kafka é bom porque não escrevia para ser lido. Mas por outro lado Shakespeare é bom porque escrevia de olho no shilling que cobrava de cada espectador. (V. Panofsky). Assim como o teatro não se salvará apenas com a vontade de escrever peças que ninguém queira assistir, a literatura também não se salvará apenas com a coragem de escrever outros Finnegans Wake (Fonseca, 1985: 177).

Discutindo a autonomia da arte, o escritor “conquista a cumplicidade do leitor cultivado, fazendo com que este perceba os mecanismos de concessão ao gosto do público maior como jogo astucioso do autor, com o qual se identifica” (Figueiredo: op. cit). Vera Lúcia afirma, ainda, que a “alusão à história interna do campo literário, por meio das referências de um romance a outro, conferindo à narrativa um grau de reflexividade, funciona, como observa Bourdieu, como uma piscadela do autor para o leitor capaz de apropriar-se das obras e não apenas da história contada” (Idem). Assim, o escritor é capaz de atender às exigências do mercado rejeitando qualquer subordinação às suas leis.
Diante de um cenário globalizado, a verdadeira arte, aquela a que Rubem Fonseca se refere, se dilui. Concorre-se com os que têm a facilidade de mostrar seu trabalho por terem conseguido um passageiro patrocínio para financiá-lo, gerando, é claro, o lucro, objetivo principal desse tipo de artista. Isso é observado com a música que leva a massa ao delírio e os críticos ao pesadelo, e que daqui a poucos anos (ou meses) é bem provável que não nos lembremos sequer da melodia delas. É uma “arte” que apenas entretêm, diverte.
No que diz respeito à dupla leitura, a conversa entre Paul Morel e Ismênia (transcrita anteriormente), demonstra a preocupação de Rubem Fonseca com relação ao valor da arte. A alta cultura parece não ter mais espaço, principalmente se o comércio está em questão. Ismênia, portanto, conclui que eles deveriam fazer outra coisa “menos inútil. Precisamos fazer uma arte que realmente atinja o povo. O povo precisa de arte” (FONSECA, 1995: 49). Ao dizer que precisam “fazer uma arte que atinja o povo”, a personagem se atenta à popularização da mesma, como se de nada adiantasse a arte intocável, inatingível e sem utilidade para aquelas pessoas. A falta de interesse por parte do público seria, do ponto de vista de Morel, culpa dos críticos formadores de opinião que influenciam as pessoas. Rubem não aborda nesse trecho a “qualidade” da cultura da qual essas pessoas dispõem, mas isso nos faz pensar que a que ele tenta preservar não está ao alcance de todos.
Em O caso Morel, Rubem (1995: 60) cita Hesíodo: “Não tenho esperanças no futuro de nosso país. Nossa juventude é insuportável, sem educação, terrível”, e expressa pessimismo diante do estado social e político do País. A citação é um grito de socorro com relação à formação geral do jovem brasileiro. Se dizem que o jovem é o futuro de uma nação, muitos são os problemas que assolam sua educação e impedem sua boa formação como cidadão. Sem esperanças, Morel considera um escritor tão sujo quanto um advogado ou um policial, pois todos eles lidam com questões sociais. E como estas questões envolvem todos os aspectos do ser humano, não há como serem limpas, transparentes. Apesar do quadro que traça para a arte, o protagonista diz que gostaria de ser escritor caso pudesse escolher outra profissão, e em tom bastante irônico, fala que escreveria um livro que teria “do princípio à página quatrocentos, um parágrafo único, compacto, coerente, consonante”, que contivesse apenas: “A. M. Carvalho, oitenta anos, come filé com fritas. Seu neto, dezesseis anos, come o mesmo prato. Investimentos diferentes. A. M. Carvalho, oitenta anos, come filé com fritas etc...” (Fonseca, 1995: 38).
Esta é a arte do nosso tempo, a que nos faz pensar e repensar sobre nosso fazer político e social ou que, simplesmente, distrai. Os escritores que lutam para se manter no mercado temem o apagamento da arte que eles consideram verdadeira. Há quem conteste que a literatura seja mais um produto a ser consumido. Em 1940, em carta a Octavio Paz, Ezra Pound diz:
Pelo amor de Deus, medite sobre aquilo que eu lhe disse uma vez: nada do que se escreve por dinheiro vale sequer um amendoim; a única coisa que vale é aquilo que se escreve contra o mercado. Não existe veneno pior que o dinheiro. Se recebemos um bom cheque, pensamos imediatamente que fizemos alguma coisa, mas pouco tempo depois já não corre sangue em nossas veias, corre dinheiro. (Paz, 1993: 106).

No início, Paz concorda com Pound, mas depois chega à conclusão que “é impossível lutar contra o mercado ou negar suas funções e seus benefícios” (in Barbieri, 2003: 40). Na contemporaneidade, não há como negar a magia mercadológica. Assim, apenas o leitor crítico tem ainda a capacidade de escolher o que ler, não se deixando influenciar pela mídia... Será?


V – Referências

ABREU, Caio Fernando. Morangos mofados. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

ABREU, Caio Fernando. Onde andará Dulce Veiga? Um romance B. São Paulo: Planeta de Agostini, 2003.

ABREU, Caio Fernando. O ovo apunhalado. Porto Alegre: L&M, 2001.

BARBIERI, Therezinha. Ficção impura. Prosa brasileira dos anos 70, 80 e 90. Rio de Janeiro: Eduerj, 2003.

BITTENCOURT, Gilda Neves da Silva. O conto sul rio-grandense: tradição e modernidade. Porto Alegre: UFRGS, 1999.

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Trad. Leandro Konder. 9 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002.

FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Escrever é cortar ou contar palavras?. (200-). Disponível em . Acesso em 07 de maio de 2006.

FONSECA, Rubem. Bufo & Spallanzani. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985.

FONSECA, Rubem. O caso Morel. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

HOBSBAWM, Eric J. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

MORAES, Alexandre Jairo Marinho. Corpos ardentes e sujeitos violentados: O contemporâneo a partir dos textos de Rubem Fonseca e Caio Fernando Abreu. In: _______. Modernidades e pós-modernidades: literatura em dois tempos. Vitória: UFES, 2002.

PAZ, Octavio. A outra voz. Tradução de Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1993.

TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. 7. ed. Trad. Elia Ferreira Edel. Petrópolis: Vozes, 1994.

[1] Ernst Fischer, em A necessidade da arte, atribui a magia como a capacidade de mudar, transformar e recriar a natureza a fim de imitá-la e satisfazer as necessidades humanas na pré-história.
[2] Wofgang Iser (1996) chama de “jogo do texto” a imediata decodificação que fazemos ao ler um texto que nos remete a uma realidade em que está inserido.
[3] Os grifos são do crítico.