domingo, 17 de maio de 2009

Ensaios de alunos de graduação com excelente nível de argumentação e fundamentação teórica

FAZEM POR MERECER
Alguns alunos do Curso Português e Literaturas do DLL/CCHN/UFES. fazem curso de Laboratório de Práticas Culturais comigo, onde analisam textos canônicos de autores brasileiros. Tenho o prazer de postar alguns com excelência na forma de pesquisa e no conteúdo.
1. O PROBLEMA DO DESENCONTRO DO HOMEM MACHADIANO
Alex Reis Souza (UFES)


A partir da citação de José Carlos Garbuglio, sobre a obra “Machado de Assis – Antologia e Estudos”, propõe-se uma reflexão sobre esse chamado “mal-entendido” que ronda os personagens dos contos “Cantiga de Esponsais” e “Um Homem Célebre”. Passemos à citação

O problema do desencontro é fundamental na formulação e interpretação do homem machadiano. ‘Mal-entendido original’, ou portador de tal atribuição, ele ganha estatuto centralizador da vida social e individual e se transforma em guia de desgoverno da criatura, para fazer do homem vítima e joguete de sua tessitura.

Alfredo Bosi, em seu texto “A máscara e a fenda”, vai explanar essa “contradição ente parecer e ser, entre a máscara e o desejo, entre o rito claro e público e a corrente escusa da vida interior” (p. 441), angústia que se verá presente na vida de Romão, em “Cantiga de Esponsais”, de Pestana em “Um Homem Célebre”.

Nesse momento é importante ressaltar que a relação de que se ocupa o narrador machadiano, segundo Bosi, é a de observar, com humor, essa força de uma necessidade objetiva que aprisiona a alma frágil de cada homem ao corpo sólido e manifesto das formas instituídas. Há um roer da substância do eu, mas que deixa viva e em pé, como verdade de fundação, essa relação de dependência do mundo interior em face da conveniência mais forte. (p. 441)

O grande mote que alimenta a angústia desses personagens é a dualidade aparência x essência. A impossibilidade da criação e as máscaras “vestidas” pelos personagens para ocultar essa sardonia, pois o narrador conta essas histórias com extrema seriedade, uma verdade porém que não está livre de ser “tecida” por uma ironia, profunda e fina. Para o que eles perseguiam, enquanto satisfação criadora, “faltava” talento, mas para o que era socialmente aceito ou esperado, havia uma habilidade em ser eficiente nas “obrigações”. Temos, assim, uma clara incompatibilidade ente os ideais e a realidade.
Bosi nos apresenta ainda um outro ângulo dessa questão quando afirma que “só há consistência no desempenho do papel social; aquém da cena pública a alma é dúbia e veleitária”. (p. 448) No caso de mestre Romão, por exemplo, apesar de bom maestro, não consegue traduzir em notas novas o seu desejo de compor um canto esponsalício. Ironicamente, a música perseguida, anos a fio, chegará a ele, entoada por uma noiva em plena felicidade de lua-de-mel. Romão vivenciava, parece-nos, duas sortes de vocação: era brilhante em reger aquilo que não era seu, e era feliz quando o fazia, em contrapartida, era estéril para dar forma ao conteúdo esponsalício que ansiava traduzir em notas.

Semelhantemente, temos em Pestana, um compositor de polcas, conhecido e aplaudido pelos que o cercam, mas que vive um dilema pessoal: não sente prazer em suas composições e na popularidade que elas lhe proporcionam, pois sua ambição é “compor uma peça erudita de alta qualidade, uma sonata, uma missa como as que admira em Beethoven ou Mozart”. Já no início do conto, é possível perceber que essa incapacidade criadora deixa o personagem “vexado e aborrecido”, descontente. De acordo com Garbuglio, há uma distinção muito grande entre o pretendido e o alcançado na vida do compositor, uma vez que nem mesmo as aclamações por parte da população, atenuam a dificuldade para trilhar o caminho que vai do anseio à realização.

Retomando Bosi, temos que esses desencontros são nomeados de contradições, seja entre o parecer e o ser, seja entre a máscara e o desejo, seja entre o que é público e a vida interior.

Adriana Giarola Ferraz Figueiredo (2006), doutora em Letras, em seu artigo “Vocação x ambição: uma análise do conto Um homem célebre” de Machado de Assis” traduz muito bem esse “mal-entendido” vivido por Pestana.

“O drama de Pestana mostra-nos a impotência espiritual de um homem que, do mais profundo do seu ser, clama pela redenção, que não é alcançada. [...] Sua vocação é algo que o incomoda e o frustra, pois sua ambição sempre falou mais alto e o tocou mais profundamente.”


No texto “O homem sob o signo da (in)vocação em Machado de Assis”, Deneval Siqueira de Azevedo Filho (1999, p. 50-51), conclui suas considerações evidenciando que para Machado, certamente a ambigüidade na relação com o outro, parece residir nos contrastes. Tanto em Pestana quanto em Romão a máscara se quebra e cai. Ali, os valores sociais são dissecados sob a ótica do que está na superfície da máscara, não sendo, entretanto, suficientemente forte para mantê-la.


REFERÊNCIAS

AZEVEDO FILHO, Deneval Siqueira de. O homem sob o signo da (in)vocação em Machado de Assis. In. De cantos, de fotografias, de (in)vocações, do obsceno e dos palcos... ensaios literários.

BOSI, Alfredo. A máscara e a fenda. In. Machado de Assis: antologia e estudos. São Paulo: Ática, 1982. p. 437-63.

DIXON, Paul. Os contos de Machado de Assis: mais do que sonha a Filosofia. Porto Alegre: Movimento, 1992. p. 44-50.

FIGUEIREDO, A. G. F. . Vocação X Ambição - Análise do conto. In: X Congresso Internacional Abralic, 2006, Rio de Janeiro. Lugares dos discursos. Rio de Janeiro : Abralic, 2006. v. 1.

2. O FANTÁSTICO MARAVILHOSO EM “A FILHA ADOTIVA” E “TARDE DE RESFRIADO” DE BERNADETTE LYRA


Alex Reis Souza


Ao falar de Bernadette Lyra, Francisco Aurélio Ribeiro (1990, p. 41) afirma ser a escritora “um nome ímpar na literatura capixaba contemporânea.” Seu livro de contos, As contas no canto (1981), premiado no Concurso Fernando Chinaglia, apresenta como marcas principais a extrema capacidade de síntese (contos com cerca de dez linhas) e lirismo aliados à acidez, à ironia e uma postura de amargura diante da vida.

Uma autora, segundo Deneval Siqueira de Azevedo Filho (2006, p. 23), que “persegue o sublime por vias avessas, sempre na tentativa de violá-lo, por meio de uma clara e intensa excitação dos narradores pelo perverso e insólito” originados em sua força imaginativa. O texto de Bernadette é caracterizado, vigorosamente, pela transgressão. Rompe com o cânone ao convidar o leitor a “olhar” os clássicos de modo a (des)construí-los e pastichesticamente ao propor uma aproximação para (re)pensar as convenções e a ordem estabelecida. “Sua escrita assume o culto do novo para estabelecer uma atualidade que tenta romper com a tradição.” (AZEVEDO FILHO, 2006, p. 21)

Ao se refletir sobre o repertório necessário para fazer as devidas inferências, estabelecer as referências intertextuais, esse mesmo teórico orienta que o leitor precisa estar mais atento, fazendo o devido distanciamento para compreender o subtexto (neuroses, ódios, mutilação, castração, etc.) em narrativas que se configurem como exemplos de realismo fantástico maravilhoso.

Segundo o conceito de fantástico definido por Tzvetan Todorov, em seu livro Introdução à literatura fantástica (1968), a característica marcante da literatura desse gênero, que mantém a ambigüidade até o fim, é a incerteza e a hesitação (verdade ou mentira?) experimentada por um ser que não conhece as leis naturais diante de um acontecimento aparentemente sobrenatural. Isto é, surge um acontecimento que não pode ser explicado conforme as leis do mundo familiar, e não é suscetível de acontecer na vida real. Portanto, cabe ao leitor, a decisão da questão: trata-se apenas de uma ilusão de sentidos e de um produto da imaginação, ou o acontecimento realmente ocorreu e faz parte da realidade.

Dependendo do posicionamento adotado, na primeira opção, as leis do mundo continuam a ser o que são, e na segunda, uma nova ordem é formada, onde a realidade é regida por leis desconhecidas por nós.

Afins ao fantástico, existem ainda alguns gêneros definidos por Todorov: se o leitor decidir que as leis da realidade permitem explicar os fenômenos descritos, a obra pertence então a categoria do estranho; entretanto, se for necessário admitir novas leis da natureza mediante as quais o fenômeno pode ser explicado configura-se então o maravilhoso.

O fantástico se dá quando algo inadmissível (acontecimentos estranhos e coincidências incomuns) se introduz na vida real de um ser humano como qualquer um de nós, rompendo totalmente com a ordem estabelecida e alterando o seu cotidiano.

Abro um parêntese para salientar que apesar de existirem algumas semelhanças com a alegoria, deve-se evitar a confusão, pois o fantástico não somente implica a existência de um acontecimento estranho que provoca dúvida, mas também, necessita de ser lido de uma forma diversa da alegoria.

Isso posto, propomos a análise dos contos A filha adotiva e Tarde de resfriado tomando como base os conceitos, acima explanados, como referência para a argumentação.

No conto, “A filha adotiva”, que faz parte da primeira parte da obra intitulada “Segundo as espécies”, a autora apresenta um casal que resolve adotar uma montanha ao invés de uma criança, fato que rompe com a ordem estabelecida. Percebe-se também uma crítica ao biotipo familiar convencional (pai, mãe e filho(a)). O conceito de construção de família é (re)pensado no conto, uma vez que ocorre uma desconsideração da voz do outro, no caso o filho, que nesse momento, personificado na figura da montanha, deixa de ter vontade própria para realizar apenas os desejos dos pais. Porém, tudo isso é orquestrado de forma muito discreta. Afinal o que está exposto (público) é passível de questionamento. Temos aí um exemplo de alienação do real. Na relação do pai com a “filha” vemos traços de uma perversão no comportamento do indivíduo. Aqui quanto mais parecida com o pai, mais amor ela recebia dele, ainda que não existisse enquanto pessoa. Fato esse que causou uma reação enciumada na mãe que desiludida assassina a filha, remetendo a esses casos de pedofilia ou abuso sexual. Uma relação que, em determinado momento, já não satisfaz o coração da mãe, justamente pela proximidade, quase sensual, com pai. Vale ressaltar a ironia presente no fato de que antes a montanha representava os sonhos de felicidade que uma filha traria ao casal, e depois pelo comportamento do próprio casal em relação à essa filha, a mesma tem que ser eliminada num ato que evidencia a miséria humana.

Já no conto, “Tarde de resfriado”, que integra a seleção da terceira parte da obra que dá nome ao livro, temos uma caverna que fica na parte norte da casa. Nesse caso, há a necessidade de buscar uma explicação para a compreensão do fenômeno narrado. A caverna passa a representar o entusiasmo perdido no meio da briga da mãe com a tia. O conto trata do papel da mulher, seja ela mãe ou um parente mais próximo (tia), na criação dos filhos e, principalmente, na castração ou estimulação da capacidade de sonhar. A leitura do conto causa um estranhamento que pode ser traduzido pelo fato do texto ser um condutor de sensações propositadamente contraditórias (como prazer/desprazer; felicidade/infelicidade; atração/repulsa, etc.). (AZEVEDO FILHO, 2006, p. 25)

A partir das considerações elencadas, conclui-se que Bernadette Lyra evidencia o contemporâneo por meio da discussão de aspectos relativos à problemática pós-moderna, utilizando-se também da literatura fantástica e lançando mão de características recorrentes ao período tais como: narcisismo; perversão no comportamento do indivíduo em sociedade; declínio das convenções de poder; polifonia; massificação e consumismo; visão fragmentada e alienante da realidade; hibridismo ou indistinção de estilos e gêneros; pastiche; ironia, intertextualidade, entre outros.


REFERÊNCIAS

AZEVEDO FILHO, Deneval Siqueira de. Anjos Cadentes: a poética de Bernadette Lyra. Rio de Janeiro, 2006.

LYRA, Bernadette. As Contas no canto. Vitória: FCAA, 1983.

RIBEIRO, Francisco Aurélio. Estudos críticos de literatura capixaba. Vitória: UFES, 1990.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.
3. MAL-ENTENDIDO ORIGINAL
Yan Patrick Brandemburg Siquera

Lab. Práticas Culturais: Oficina de Leitura e Interpretação Literária l

“O problema do desencontro é fundamental na formulação e interpretação do homem machadiano. ‘Mal-entendido original’, ou portador de tal atribuição, ele ganha estatuto centralizador da vida social e individual e se transforma em guia e desgoverno da criatura, para fazer do homem vítima e joguete de sua tessitura.” J.C. Garbuglio

Os contos “O Homem Célebre”, “Cantiga de Esponsais” e “O Machete”, escritos por Machado de Assis, tratam do desencontro interior do indivíduo que surge como símbolo do “mal-entendido original”, ou seja, dialogam entre si sobre a condição “Ambição versus Vocação”, discorrendo através da narrativa sobre os diferentes fatores sociais e psicológicos que geram na personagem o desencontro de si mesma, mascarando-a com o sucesso para o exterior, representado pela relação da personagem com o ambiente (tempo e espaço) em que é inserida e comprovando pela demonstração de seu interior o desarranjo e desarmonia, gerada pela insatisfação com a arte, que a “criatura” possui, sendo ela, deste modo, vítima da própria criação.
Os músicos Pestana, Romão e Inácio Ramos são representações de um foco narrativo sobre uma mesma questão: a impossibilidade do homem de transcender e ser senhor de sua criação, de aprimorar-se naquilo que deseja ser e não naquilo que aparenta ser, em outras palavras, de tornar o desejo interior em exterior superando as diferenças entre os ideais e a realidade. Porém, tal desejo em nenhuma das personagens se realiza, todas, inevitavelmente, são suplantadas, seja pela incapacidade de expor na arte escolhida aquilo que se sente, seja pela falta de inspiração na escolha das notas musicais ou pelos limites impostos pela própria vocação, o narrador impele-os para um fim trágico; “bem com os homens e mal consigo mesmo.”
A vocação surge como um duplo: sustenta as personagens perante suas necessidades básicas e impede-as de satisfazer suas maiores ambições. Pestana, homem popularmente reconhecido como compositor de polcas, reprime-se pela simplicidade de sua criação. Na casa onde mora, cercado de retratos dos músicos que considera imortais, tenta inutilmente alcançar e tomar para si o dom da imortalidade que somente a música erudita pode proporcionar. Polcas são populares e delas Pestana tira seu sustento, entretanto, o compositor almeja aquilo que a simples popularidade desse estilo musical não pode oferecer: ser mais um rosto nos retratos imortais.
Romão Pires é, como conta o narrador, um “velho” de sessenta anos profundo conhecedor da teoria musical e publicamente conhecido como Mestre Romão que ganha vida ao reger uma missa cantada: “O olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro.” Romão almeja não só expressar na música aquilo que sente, mas também tornar-se um grande compositor. Já idoso, decide terminar o canto esponsalício iniciado quando jovem. Nada. Nenhuma inspiração faz possível finalizá-lo. O desfecho ocorre quando o mestre deparava-se com a nota musical “lá” que tanto procurou saído da boca de uma jovem recém-casada. A música, portanto, é natural, sentimental e criada por acaso pela pura inspiração da felicidade, não bastando apenas os conhecimentos teóricos, mas também o dom que não é alcançado pelo Mestre Romão: a espontaneidade.
Para Inácio Ramos, personagem principal do conto “O Machete”, a rabeca representa seu oficio, seu modo de vida, enquanto para o violoncelo ele guardava suas maiores aspirações. Mesmo assim é outro instrumento com outro gênero musical que prevalece. Barbosa, músico que toca o machete, destaca-se no decorrer da narrativa e, no desfecho, acaba por fugir com a esposa de Inácio que encerra o conto de modo trágico e em uma só linha: “A alma do marido chorava, mas os olhos estavam secos. Uma hora depois enlouqueceu.”
Sendo assim, tais personagens ao mesmo tempo em que são artistas, não produzem especificamente a arte que desejam, o pretendido é distante do que foi alcançado e do que pode ser alcançado, formulando, assim, uma crítica a própria arte ao qual ao mesmo tempo que emociona e satisfaz seus interlocutores, podendo, inclusive, despertar novos sentimentos e gerar a purificação pela Catarse, pode ser trágica para aquele por quem é produzida.

Referências:

Adriana Giarola Ferraz Figueiredo. “Vocação x Ambição – Análise do Conto Um Homem Célebre de Machado de Assis.” Site consultado: http://www.idelberavelar.com/abralic/txt_7.pdf - Acessado em 16 de Maio de 2009.
Adriana Giarola Ferraz Figueiredo e Rafael Guimarães. “Um homem célebre, conto da obra ‘Várias Histórias’, de Machado de Assis.” Site consultado: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/u/um_homem_celebre_conto - Acessado em 16 de Maio de 2009.

4. AS MÁSCARAS MACHADIANAS
Luanda Moraes Pimentel

Os contos “Cantiga de Esponsais”, “Um homem célebre” e “O machete”, de Machado de Assis, problematizam a questão da criação artística, no campo da música.
Em “Cantiga de Esponsais”, o personagem Romão Pires, no início do conto, rege uma orquestra, em uma missa, com total devoção, uma vez que, nesse momento, “(...) a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se (...)” (p. 201). Contudo, assim que a missa termina, mestre Romão se transforma − “acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária (...)” (p. 201), pois quando está sozinho, nota-se a tristeza enorme que sente, devido querer muito compor algo, mas não possuir inspiração suficiente para isso.
Três dias após casar-se, Romão achou que teria inspiração para compor um canto esponsalício, mas conseguiu escrever apenas algumas notas. Quando estava quase morrendo, tentou terminar o seu canto, mas continuava sem inspiração, então, em um ato desesperador, pegou o papel, onde estavam escritas as poucas notas, e o rasgou, sendo que nesse exato momento,

(...) [uma] moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou (p. 203).

O início do conto “Cantiga de Esponsais” transmite uma imagem de serenidade, em que as coisas parecem estar no lugar certo, mas ao se adentrar no enredo, verifica-se que não é bem assim, pois Romão, mesmo sendo reverenciado pelos que o conhecem, sente uma frustração imensa, por conta da sua incapacidade de compor.
Nota-se que Romão possuía muito conhecimento acerca de música, mas isso não o ajudou a compor, assim como não ajudou a sua persistência, visualizada nas inúmeras tentativas de criação, pois, como mostra o conto, a criação é alcançada de forma espontânea, como mostra o seu final, quando uma moça canta uma música à toa, mas que seria aquela tão desejada por Romão.
Em Pestana, personagem do conto “Um homem célebre”, encontra-se o mesmo anseio pela criação artística que há em Romão, mas com algumas diferenças, pois aquele consegue compor, mas compõe polcas, quando gostaria de criar música erudita.
No início do conto “Um homem célebre”, Pestana está “vexado e aborrecido”, por causa das polcas que ele próprio criara. Isso se deve ao fato dele querer compor música clássica, mas não conseguir, enquanto que para as polcas, gênero popular, possuía muita inspiração. O seguinte trecho evidencia a falta de inspiração de Pestana para criar música erudita: “Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se (...) a inspiração não vinha (...)” (p. 419).
Pestana casa-se com uma cantora, esperando, com isso, ter inspiração para criar música erudita, mas isso não acontece, pois continua sem inspiração, não conseguindo terminar um Requiem, que tenta compor por causa da morte da esposa, enquanto que, para as polcas, não lhe faltava inspiração, ainda que elas não lhe pertencessem completamente, pois mesmo tendo vocação para criá-las, era o seu editor que escolhia os títulos e, muitas vezes, os temas.
Observa-se que Pestana desejava ser compositor de uma obra que o eternizasse, tal qual a dos grandes nomes da música clássica universal, ou seja, quer algo mais elevado, que o transportasse para além do seu momento, pois, assim, mesmo depois de sua morte, o público se lembraria dele, mas compõe somente polcas, as quais faziam sucesso por um período muito pequeno, sendo uma substituída pela outra, principalmente por causa dos seus temas serem sobre coisas atuais. Nota-se, então, que Pestana quer ser eternizado, mas só consegue um sucesso que o consagra na plenitude de sua existência.
Em “Cantiga de esponsais”, Romão consegue ouvir aquilo que tanto queria compor expressado por outra pessoa, porém Pestana, em “Um homem célebre”, não alcança, nem mesmo por outra pessoa, a contemplação daquilo que desejava exprimir a si mesmo, mas não conseguia. Tanto Romão quanto Pestana alcançaram sucesso por meio daquilo que não expressava os seus verdadeiros impulsos artísticos musicais.
Em “O machete”, narra-se a história de Inácio Ramos, que teve, como primeiro instrumento musical, a rabeca, mas o único instrumento que conseguiu satisfazer às sensações de sua alma foi o violoncelo:

Havia no violoncelo uma poesia austera e pura, uma feição melancólica e severa que casavam com a alma de Inácio Ramos. A rabeca, que ele ainda amava como o primeiro veículo de seus sentimentos de artista, não lhe inspirava mais o entusiasmo antigo. Passara a ser um simples meio de vida; não a tocava com a alma, mas com as mãos; não era a sua arte, mas o seu ofício. O violoncelo sim; para esse guardava Inácio as melhores das suas aspirações íntimas, os sentimentos mais puros, a imaginação, o fervor, o entusiasmo (...) (p. 22).

Após ter se casado, Inácio passou a tocar o violoncelo para a sua esposa e, depois, para um grupo de amigos, conhecendo, neste, Amaral e Barbosa, os quais começaram a freqüentar a sua casa, sendo que este tocava machete.
Carlotinha, esposa de Inácio, adorou o machete e tratou de popularizá-lo na sociedade, fazendo Barbosa adquirir sucesso. Depois dessa fama alcançada por Barbosa, Inácio começou a se arrepender de não ter aprendido a tocar machete, ao invés do violoncelo. No final do conto, revela-se que Carlotinha abandonou Inácio e o filho, para viver com Barbosa. Como afirma Inácio, “(...) ela foi-se embora, foi-se com o machete. Não quis o violoncelo, que é grave demais. Tem razão; machete é melhor. A alma do marido chorava mas os olhos estavam secos. Um hora depois enlouqueceu” (p. 31).
Nota-se que, no conto “O machete”, assim como em “Um homem célebre”, existe um conflito entre a música erudita e a música popular. Conseguindo esta se sobressair nos dois contos, pois, em “Um homem célebre”, Pestana somente consegue produzir música popular, mesmo querendo compor música erudita e, em “O machete”, o machete, instrumento popular, tem uma maior recepção por parte do público do que o violoncelo, instrumento erudito, visualizado, principalmente, no fato da mulher de Inácio se apaixonar pelo músico que tocava machete e fugir com ele, abandonando o marido.
Inácio, mesmo gostando e tendo vocação para o violoncelo, afirma que gostaria de ter aprendido o machete, dizendo que este é melhor, isso ocorre por causa do sucesso que o instrumento de Barbosa estava alcançando na sociedade, quando comparado ao seu violoncelo, o qual não tinha uma recepção muito grande por parte do público.
Alfredo Bosi (1982, p. 441), em “A máscara e a fenda”, destaca que, nos contos de Machado de Assis, há uma “(...) contradição entre parecer e ser, entre a máscara e o desejo, entre o rito claro e público e a corrente escusa da vida interior (...)”. Observa-se que essa afirmação retrata a temática dos três contos discutidos – “Um homem célebre”, “Cantiga de Esponsais” e “O machete” – visto existir um conflito entre a essência e a aparência, devido os personagens estarem divididos entre ser e querer ser, entre aquilo que são e o que a sociedade quer que eles sejam, ou seja, os personagens acabam sendo múltiplos, por apresentarem muitas máscaras.
Em “Cantiga de Esponsais”, o personagem Romão exerce, na sociedade, a profissão de maestro, sendo nesta reverenciado, porém nota-se que ele é triste, pois gostaria de compor alguma coisa, mas não consegue, ou seja, o personagem usa uma máscara, por aparentar ser aquilo que não é, uma vez que transmite, para a sociedade, uma falsa imagem de um maestro realizado e feliz com a sua profissão.
Em “Um homem célebre”, também existe a presença da máscara, uma vez que Pestana, para se manter financeiramente, compõe polcas e adquire, com as suas criações, um prestígio na sociedade, enquanto que, na verdade, é triste e frustrado, devido não conseguir compor música clássica.
Em “O machete”, o personagem usa uma máscara no início do conto, pois mesmo gostando do violoncelo, continuou tocando a rabeca, a qual passou a ser o seu ofício, ou seja, “(...) não a tocava com a alma, mas com as mãos (...)” (p. 22), encontrando-se aqui a contradição entre verdadeiramente ser e aparentar ser. Contudo, “O machete” diferencia-se dos contos “Cantiga de Esponsais” e “Um homem célebre”, uma vez que Inácio usa máscara no início, mas depois não faz mais uso dela, visto assumir a sua preferência pelo violoncelo, pois mesmo quando afirma que o machete é melhor, por agradar mais ao público do que o seu instrumento, não deixa de tocar o violoncelo, perdendo, com isso, a esposa e ficando só com o filho.
Segundo Garbuglio (1982, p. 461),

o problema do desencontro é fundamental na formulação e interpretação do homem machadiano. “Mal-entendido original”, ou portador de tal atribuição, ele ganha estatuto centralizador da vida social individual e se transforma em guia e desgoverno da criatura, para fazer do homem vítima e joguete de sua tessitura.

Percebe-se que essa afirmação de Garbuglio vai ao encontro do pensamento de Alfredo Bosi (1982), visto destacar o desencontro que há nos personagens machadianos, por conflitarem entre ser aquilo que realmente são ou vestir uma máscara e ser aquilo que a sociedade quer ou espera que eles sejam.
Segundo Bosi (idem, p. 441), nos contos:

(...) vê-se que a vida em sociedade, segunda natureza do corpo, na medida em que exige máscaras, vira também irreversivelmente máscara universal. A sua lei, não podendo ser a da verdade subjetiva recalcada, será a da máscara comum exposta e generalizada. O triunfo do signo público (...).

A partir dessa citação de Bosi, compreende-se o porquê de Garbuglio afirmar que o homem machadiano é uma vítima, pois para sobreviver na sociedade e adquirir um status social, ele não pode ser verdadeiro, demonstrando aquilo que realmente é ou sente, uma vez que precisa se adaptar às normas sociais, ou seja, precisa usar máscaras.
Observa-se que, quando os personagens usam a máscara, eles alcançam um sucesso exteriormente, enquanto que interiormente sentem-se fracassados, o que é caso de Romão e Pestana, nos contos “Cantiga de Esponsais” e “Um homem célebre”, porque mesmo a sociedade admirando-os, eles são infelizes. Nota-se que quando os personagens não utilizam máscaras e são verdadeiros, demonstrando aquilo que realmente sentem, ou seja, o interior se sobressai, não alcançam prestígio na sociedade, verifica-se isso em Inácio, personagem do conto “O machete”, pois, como afirma Bosi (idem, p. 441-442), “a necessidade de proteger-se e de vencer na vida – mola universal – só é satisfeita pela união ostensiva do sujeito com a aparência dominante. (...) A máscara é, portanto, uma defesa imprescindível (...)”.









Referências

ASSIS, Machado de. “Cantiga de Esponsais”. In: GLEDSON, John (org.). 50 contos de Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 200-203.
ASSIS, Machado de. “O machete”. In: GLEDSON, John (org.). 50 contos de Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, 21-31.
ASSIS, Machado de. “Um homem célebre”. In: GLEDSON, John (org.). 50 contos de Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 417-425.
BOSI, Alfredo. “A máscara e a fenda”. In: _________ et al. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982.
GARBUGLIO, José Carlos. “A linguagem política de Machado de Assis”. In: BOSI, Alfredo et al. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982.

5. O VALOR DAS MÁSCARAS

Denise Rosa Nogueira Fernandes

O problema do desencontro é fundamental na formulação e interpretação do homem machadiano. “Mal entendido original”, ou portador de tal atribuição, ele ganha estatuto centralizador da vida social e individual e se transforma em guia e desgoverno da criatura para fazer do homem jogo e joguete de sua tessitura.

J. C. Garbuglio

Machado reconhece o valor das máscaras, do jogo de aparências, instituído na sociedade. Segundo Alfredo Bosi, “cresce em Machado a suspeita de que a aparência funciona universalmente como essência, não só na vida pública, mas no segredo da alma”

Os dois trechos acima ressaltam a dificuldade de distinguir com clareza entre o que se parece ser e o ser. A vida em sociedade leva o homem a usar máscaras que às vezes se confundem com o real. E o homem fica perdido, em desgoverno. Nesse processo sua auto-imagem e sua alma são perdidas. Nos personagens de Machado, podemos vislumbrar o homem por trás da máscara através das “fendas” definidas por Bosi.

Através do olhar do outro, o homem se reconhece. No conto “O espelho”, o alferes, ao se mirar no espelho sem a farda que lhe dava seu status, não se reconhece; Ao vesti-la de novo e voltar a olhar no espelho, volta a existir para si próprio. “O alferes eliminou o homem”. A farda é a máscara necessária.

No conto “O Machete”, percebemos esta dualidade; “os outros” e “si mesmo: Inácio tocava a rabeca para os outros e o violoncelo para si. Para os outros, a máscara: “não tocava com a alma, mas com as mãos, não era a sua arte, mas o seu ofício.” A sua essência, alcançava tocando o violoncelo, mas não expunha aos outros, tocava em serões caseiros, primeiro para a mãe, depois para a mulher. O vocabulário do sagrado comparece em “céu”’ “harmonias celestiais”, “harmonias santas e elevadas”, artista divino”. Inácio teme a não aceitação dos “outros”, quando Amaral lhe sugere fazer um concerto: “tenho medo de não agradar”. Em “Cantigas de Esponsais”, Romão também tem vergonha da vizinhança, medo do seu julgamento.

Nos contos “O Machete” e “Um Homem Célebre”, vemos a oposição entre música erudita e popular, a primeira associada ao sublime, superior. Em “Um Homem Célebre” o piano era o altar, a sonata de Beethoven, o evangelho. O caráter transcendente é ressaltado, Pestana toca Mozart “com a alma alhures”. No entanto Pestana, assim como Romão, em “Cantigas de Esponsais” não é agraciado pelo dom da criação artística. Ele roga “aos anjos, em último caso ao diabo” em vão. Ambos tocavam obras alheias, mas tinham o desejo de criar obra própria e alcançar a imortalidade por meio dela.

A rua em que Pestana morava tinha um nome que refletia seu estado de espírito, “Rua do Aterrado”. Ele se envergonha de suas composições, polcas fáceis e de gosto popular, mas que lhe dão uma aceitação social, ele é um homem célebre graças a elas, mas revolta-se, como neste trecho: “arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa”ou ainda em “As polcas que vão para o inferno”.

Machado por meio de seus personagens mostra que a criação não é um ato de vontade. Nem Pestana nem Romão, por mais que se esforcem conseguirão alcançar a composição que tanto almejam.

Em “Cantigas dos Esponsais”, voltamos a questão da máscara e da fenda. À frente da orquestra ele “era outro”, conhecido pela sociedade, “todos gostavam dele”, comparado ao grande ator João Caetano, sua imagem pública era a máscara que ocultava o verdadeiro Romão, fracassado em suas inúmeras tentativas de compor sua ária que será finalizada sem o menor esforço por uma moça apaixonada. A frustração do personagem é desvendada por Machado pelos de detalhes como a descrição física de Romão, “limito-me a mostrar a cabeça branca desse velho”, ou em “descendo o coro apoiado na bengala”, ou ainda “seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste”.

O desejo e a impossibilidade de realização estão perfeitamente demonstrados neste trecho:

Ah, Se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que não têm. As primeiras realizam-se, as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas.

Observamos nos três contos o desencontro, citado por Garbuglio, do homem machadiano dividido entre a sua essência e como ele se mostra e é visto pela sociedade, sua aparência, muitas vezes indissociáveis, como no personagem Pestana, que é “eterna peteca entre a ambição e a vocação”, onde nos perguntamos se sua verdadeira vocação era compor suas polcas ou se as compunha porque era isso que esperavam dele? E qual era sua ambição? Ganhar dinheiro e fama com suas polcas ou tornar-se imortal com sua música com mesmo valor dos grandes músicos que enfeitavam sua parede?

Os três textos têm em comum além dos personagens músicos, impossibilidade criativa, frustração e máscaras sociais, o final que terá a morte como destino doe Romão, Inácio e Pestana e que simboliza a impotência criadora dos mesmos.

Referências:

BOSI, Alfredo. A máscara e a fenda. In: ______. Machado de Assis. Antologia e estudos. São Paulo; Editora A\Ática, 1982, p. 437-457.

GARBUGLIO, José Carlos. A linguagem política de Machado de Assis. In: ________. Machado de Assis. Antologia e Estudos. São Paulo; Editora Ática, 1982, p. 461-463.

ASSIS, Machado de . Cantigas de Esponsais. Site internet: http://www.releituras.com

ASSIS, Machado de. Um Homem Célebre. In:_________ . Machado de Assis, Contos. Porto Alegre, L&PM, 2008, p. 51-62.

ASSIS, Machado de. O Machete. Site internet: http://www.cce.ufsc.br, acessado em 22/05/2009, às 21h

6. MACHADO E SUA TÉCNICA SINGULAR: ESSÊNCIA VS. APARÊNCIA
SILEYR DOS SANTOS RIBEIRO

No conto “Cantiga de esponsais”, é provado mais uma vez que não somos nada além de uma mesquinha essência, revestida por uma máscara social que esconde o verdadeiro ser. A personagem principal, Romão, é em sua essência um homem taciturno, porém, quando rege a orquestra ilumina-se e transborda um nímio de devoção naquilo que não é capaz de produzir. Este conflito entre o que somos e o que aparentamos ser muitas vezes toma uma forma exterior, e é isso que faz com que acabemos por identificar um pouco de cada um de nós no Mestre Romão.
Vemos também essa máscara e esse conflito interior em Pestana no conto “Um homem célebre”. Ele tem aparência de um compositor de música erudita, tanto que isso provoca um estranhamento por parte da sociedade por ele ser um compositor de polcas, música de gênero popular, vestindo-se como um cânone da arte. Sua máscara refletia aquilo que ele buscava (a criação de música clássica), todavia seu verdadeiro dom era o de criar “polcas buliçosas” o que lhe causava grande frustração. É uma personagem que usa da máscara como reveladora de suas intimas aspirações, pois delega a ela o poder de demonstrar que seu talento vai de encontro com o almejado na criação artística, tentando, assim, demonstrar a si mesmo a sua ojeriza ao profano.
Em “O machete”, encontramos mais uma vez a presença dessa máscara humana em Inácio, que utiliza de uma aparência mais popular (rabequista) como ofício, mas possui a grande paixão e vocação pelo violoncelo, sendo capaz de exprimir nele toda a fragilidade do seu ser brando e profundo.
Temos nos dois últimos casos um conflito entre o gosto do vulgo pelo popular (polca, rabeca, machete) e o interior clássico de ambos, o que leva a um joguete do que seria a realidade concreta de cada um: se as aspirações ou os ofícios de cada qual e até onde caberia a distinção entre a farsa e a verdade. Enquanto “mascarados”, vemo-los bem com o mundo e, enquanto essência, vemos um rol de frustração e impotência consigo mesmos.
Romão, assim como Pestana e Inácio, é uma pessoa respeitada e célebre, porém, há um vazio subjetivo, uma vontade de também compor aquilo que enquanto “Mestre Romão” regia com tanta devoção. A própria essência dele é frustrada por algo que não chega a existir no espaço físico, mas habita seu interior e quer ser expresso, porém o mestre não possui o talento necessário.
O próprio título do conto já remete ao sadismo machadiano: a cantiga esponsalícia apetecida pelo velho mestre foi tentada veementemente enquanto ele era casado e após o fenecimento da esposa, mas ganhou forma pela boca de uma moça recém casada e por acaso, o que prova que a arte também se manifesta onde não há sua procura.
Ao vermos o título do conto “Um homem célebre”, o imaginamos um homem realizado e que ama seu ofício, no entanto, Pestana não o é. E ele é mais uma personagem frustrada por desejos incoerentes com seus dons, ou seja, aquilo que o tornou célebre (bem com a sociedade) deixa-o mal consigo mesmo.
Em cada um dos contos vemos a necessidade da felicidade como fonte da criação e a vontade de deixar um legado artístico das personagens principais.
Em “O machete”, Inácio é uma pessoa carente de uma figura feminina para dividir sua essência e aquilo que apraz. Com a perda da mãe, essa carência é preenchida pela esposa, que quase não compreende a profundidade que o violoncelo tem para ele. Quando Inácio vê a possibilidade de uma exposição de seu talento particular surge o sentimento de medo da incompreensão alheia, o que abre espaço para o desejo de novas possibilidades (uma que fosse popular, no caso o machete), também a percepção da traição de sua jovem esposa começa a perturbar seus pensamentos e gera um conflito interior.
Por conseguinte, todo esse conflito chega ao ápice com a confirmação da perfídia de Carlotinha, obtendo como resultado a máxima do conflito existencial: o desvario.
Vemos que quando há a fuga da máscara as personagens colocam outra:a da morte, no caso de Romão e Pestana e a da desrazão, no caso de Inácio.
O narrador machadiano é de um sadismo e um humor feroz tamanhos que brinca e até mesmo ilude o narratário. Por exemplo, temos Romão: quando morre escuta o que procurou durante toda a sua vida expresso pela boca uma moçoila num “cantarolar à toa”, também quando, no final do conto, com uma rápida narrativa o narrador nos faz pensar que Romão conseguirá concluir a cantiga, porém desfaz as momentâneas expectativas com um tragicômico final.
Esse narrador sadônico também faz isso com Pestana que é perseguido por suas ”polcas cruéis” na hora da morte da esposa e quando acha haver conseguido compor uma sonata, ela era de Chopin.
Vemos também a preferência do próprio povo pelo popular com o caso do machete, com o qual o narrador satiriza ao final fazendo com que o próprio violoncelista admita isso, pois perdeu, supostamente, sua esposa para o machete, dado, assim, como superior.
Assim temos o homem como uma farsa (um mal-entendido) que ganha centralidade enquanto mascarado e perde o controle de si, abrindo espaço para a frustração a qual o vitima.
O desencontro da postura do homem social em antítese as suas aspirações mostram-nos que somos uma jaula na qual assistimos passivos a batalha de nossas feras interior e exterior. Há um profundo desencontro da personalidade com a aparência, ou seja, a essência humana adquire formas lapidadas pelas máscaras da farsa na qual vivemos. Logo, Machado tende a mostrar que pode dissecar e expor ao leitor as feras cheias de frustrações e recalque.



REFERÊNCIAS:

BOSI, Alfredo. “A máscara e a fenda”. In: Machado de Assis- Antologia e Estudos. São Paulo: Ática, 1982.
DIXON, Paul. Os contos de Machado de Assis: mais do que sonha a Filosofia. Porto Alegre: Movimento, 1992.

7. O FANTÁSTICO EM ÁLBUM DE FIGURINHAS, DE BERNADETTE LYRA

1 O FANTÁSTICO


Segundo Tzvetan Todorov (1968), em seu livro Introdução à literatura fantástica, o fantástico é observado quando ocorre um determinado evento, em um mundo semelhante ao do leitor, mas que não pode ser esclarecido pelas leis desse mesmo mundo familiar e, também, não é possível de ocorrer na vida real.

Quando o leitor se depara com tal acontecimento, deve optar por considerá-lo um produto da imaginação, não se alterando, portanto, as leis da realidade, ou, então, pode acreditar que ele verdadeiramente ocorreu, modificando-se as leis do mundo, uma vez que a realidade possui leis desconhecidas pelos leitores. Sendo que esse leitor não é um leitor real, mas, sim, uma “função” de leitor, a qual já se encontra implícita no texto.

Quando ocorre essa incerteza do leitor, podendo ser expressa ou não por uma personagem – entre o evento ter realmente acontecido ou não – verifica-se a presença do fantástico, pois, como afirma Todorov (idem, p. 31), “(...) O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural (...)”. A partir do momento em que o leitor ou a personagem escolhe uma ou outra opção, não se trata mais do fantástico, e sim do estranho ou do maravilhoso (AZEVEDO FILHO, 2006).

Nota-se a presença do estranho quando o leitor considera que as leis do mundo real não são alteradas e que os acontecimentos podem ser explicados pelas leis da razão, visto serem reduzidos a fatos conhecidos. Já o maravilhoso ocorre quando um evento não pode ser explicado pelas leis existentes no mundo real, precisando-se, assim, aceitar novas leis da natureza.

O fantástico diferencia-se da alegoria, uma vez que nesta não prevalece o significado literal das palavras, visto procurar outro sentido para as mesmas palavras. Se ao se observar um evento sobrenatural, não se considerar o sentido literal, mas, sim, buscar outro sentido que não tenha nada de sobrenatural, não existe mais a presença do fantástico, pois este surge do fato de se tomar o sentido figurado “ao pé da letra”.

O ressalte dessas características do fantástico, presentes no livro Introdução à literatura fantástica (1968), de Tzvetan Todorov, serão necessárias para a análise, que se pretende fazer do conto “Álbum de figurinhas”, de Bernadette Lyra, devido à presença do fantástico ser marcante nesse conto.


2 “ÁLBUM DE FIGURINHAS”


Antes de se adentrar no conto “Álbum de figurinhas”, de Bernadette Lyra, é necessário, primeiramente, salientar algumas características acerca do conto brasileiro contemporâneo, para uma melhor compreensão do texto de Lyra.

Segundo Alfredo Bosi (1994, p. 7), no texto “Situação e formas do conto brasileiro contemporâneo”, o conto consegue, no seu espaço, condensar e potencializar todas as possibilidades da ficção, “(...) daí ficarem transpostas depressa as fronteiras que no conto separam o narrativo do lírico, o narrativo do dramático”.

Para Bosi (idem, p. 8), “(...) O conto tende a cumprir-se na visada intensa de uma situação, real ou imaginária, para a qual convergem signos de pessoas e de ações e um discurso que os amarra”.

O conto “Álbum de figurinhas” faz parte do livro As contas no canto (1981), de Bernadette Lyra. O conto narra a história de uma mulher, que viu uma garça, em um álbum de figurinhas do irmão, e decidiu que seria uma garça. Por saber que a família tentaria dissuadi-la quanto ao seu desejo, passou a praticar, em segredo, todas as manhãs, durante dez minutos, até que conseguiu se transformar em uma garça. Certo dia, ela decidiu mostrar, para a sua família, a transformação pela qual havia passado, mas conseguiu, com essa aparição, somente ser engaiolada para sempre em seu quarto.

Observa-se que a partir das definições de Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes (1988), no livro Dicionário de Teoria da Narrativa, o narrador, no conto “Álbum de figurinhas”, é um narrador heterodiegético, visto narrar uma história à qual é estranho, porque não participa como personagem.

A partir da definição de conto contemporâneo, de Alfredo Bosi (1994), exposta anteriormente, pode-se visualizar, no conto “Álbum de figurinhas”, o olhar do narrador para uma determinada situação fantástica. Por meio desse narrador, é apresentado aos leitores um mundo semelhante ao deles – com uma família, uma casa, um quarto e um álbum de figurinhas – mas, contudo, diferente, pois ocorre um acontecimento sobrenatural, já que uma mulher se transforma em uma garça. Como isso não é algo possível de ocorrer no mundo real, os leitores, no conto “Álbum de figurinhas”, deparam-se com a presença do fantástico.

Todorov (1968) afirma que o fantástico ocorre quando um leitor se depara com a incerteza se um determinado evento ocorreu ou não. Nota-se que isso é verificado no conto de Bernadette Lyra, pois os leitores não possuem certeza se a mulher realmente virou uma garça ou é apenas um sonho. Incerteza esta que é mantida até o final do conto, mesmo não sendo observada nos personagens, visto estes não duvidarem da existência da metamorfose.

Como a incerteza – quanto à transformação ou não da personagem – está presente em todo conto, pode-se falar, apenas, da presença do fantástico, e não do maravilhoso ou o do estranho, já que estes pressupõem uma decisão do leitor a favor do sonho ou da verdadeira transformação da personagem.

Segundo Francisco Aurélio Ribeiro (1993, p. 159-160), “(...) o grande valor da escritura de Bernadette Lyra está no perfeito domínio da técnica do conto, na habilidade em trabalhar a ironia pela linguagem, em contos fantásticos, alegóricos ou quase-naturalistas. (...) o que marca a sua prosa de ficção é a estranheza do fantástico, a realidade do cotidiano e a lucidez do narrador (...)”.

Observa-se que essa afirmação de Ribeiro destaca as características observadas no conto “Álbum de figurinhas”, pois, neste, a autora trabalha, com maestria, o gênero conto, provocando um estranhamento nos leitores, uma vez que, como foi explanado anteriormente, os leitores se depararam com um acontecimento fantástico – uma mulher se transforma em uma garça.

Vale ressaltar, ainda, que quanto ao gênero conto, Deneval Siqueira de Azevedo Filho (2006, p. 24) afirma que Bernadette Lyra “(...) impacienta-se todo o tempo de sua escrita, com a regularidade formal e busca atingir liberdade de forma e expressão, mutilando, de certa forma, a receita do gênero conto (...)”. Nota-se que essa afirmativa de Azevedo Filho vai ao encontro da de Bosi (1994), devido este afirmar que o conto contemporâneo, por querer condensar todas as possibilidades da ficção em uma narrativa curta, acaba por transpor as suas fronteiras.

Desta forma, pode-se concluir que Bernadette Lyra, em seu conto “Álbum de figurinhas”, apresenta, aos leitores, um conto contemporâneo marcado pela presença do fantástico, uma vez que os leitores apresentam dúvidas quanto à verdadeira transformação de uma mulher em uma garça, pois, como afirma Todorov (1968), no gênero fantástico, os leitores não possuem certeza se os acontecimentos narrados realmente ocorreram.







REFERÊNCIAS

AZEVEDO FILHO, Deneval Siqueira de. Anjos cadentes. Rio de Janeiro: Academia Campista de Letras, 2006.
BOSI, Alfredo. “Situação e formas do conto brasileiro contemporâneo”. In: _________. (Org.) O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1994.
LYRA, Bernadette. As contas no canto. Vitória: FCAA, 1981.
REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática, 1988.
RIBEIRO, Francisco Aurélio. A modernidade das letras capixabas. Vitória: SPDC/UFES, 1993.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica; 3ª ed; trad. Maria Clara Correa Castelo. São Paulo: Perspectiva, 1968.








quinta-feira, 14 de maio de 2009

A QUESTÃO SOCIAL DOS PÁRIAS NA ÍNDIA

A Poesia Dalit
Quem assiste à novela global “Caminho das Índias”, de Glória Perez, que faz uma abordagem melodramática da cultura indiana, não faz idéia de como funciona o sistema de castas neste país em desenvolvimento. O sistema de castas (Varna) indiano é dividido de acordo com a estrutura do corpo de Brahma, deus hindu. As quatro principais castas são: A boca (Brahmin) que é representada pelos sacerdotes, filósofos e professores; os braços (Kshatriya) são os militares e os governantes; o estômago (Vaishya) são os comerciantes e os agricultores; os pés (Shudra) são os artesãos, os operários e os camponeses. A representação das quatro principais castas do hinduísmo em torno do deus Ganesha exclui a “poeira sob os pés”. Não pertence às castas, mas tem um nome: são os Dalit ou párias, os chamados intocáveis (a quem Mahatma Gandhi deu o nome de Harijan, “filhos de Deus”). São constituídos por aqueles (e seus descendentes) que violaram os códigos das castas a que inicialmente pertenciam. São considerados impuros e, por isso, ninguém ousa tocar-lhes. Fazem trabalhos considerados desprezíveis: recolha de lixo, coveiros, cata de gravetos para a queima de mortos, etc.
Poucas pessoas no mundo têm experimentado um nível de abuso e pobreza como os 300 milhões de Dalits ou “intocáveis” da Índia. Por 3.000 anos eles têm vivido num ciclo de discriminação e desespero sem esperança de escape. Para os Dalits, dor e sofrimento são parte da vida. Eles estão presos a um sistema de castas que lhes nega a adequada educação, água potável, emprego decente e direito à terra ou à casa própria.A cada duas horas, Dalits são assaltados e duas casas de Dalits são queimadas.Discriminados e oprimidos, Dalits são frequentemente vítimas de violentos crimes. A cada dia, dois deles são assassinados, sem que se dê a devida importância.Embora leis tenham sido aprovadas, a discriminação continua e pouco é feito para processar os acusados. Em anos recentes, porém, tem havido um crescente desejo por liberdade entre os Dalits e castas baixas hindus. Líderes como Ram Raj tem vindo a frente exigindo justiça e liberdade da escravidão das castas e da perseguição.Uma detalhada “Carta dos Direitos Humanos dos Dalits” foi redigida com apelos para a Comunidade Internacional e para a ONU, na esperança de que esses fatos fossem conhecidos pelo mundo todo. Contudo pouco tem mudado e a realidade nos mostra que Dalits que conseguem chegar a uma escola, são forçadas a sentarem de costas nas salas de aula ou até ficarem fora da sala. A cada hora, duas casas de Dalits são queimadas e a cada hora, dois Dalits são assaltados. A maioria das castas altas evitam ter Dalits preparando sua comida, por medo de se tornarem imundos. Em muitas partes da Índia, Dalits não são permitidos entrar nos templos e outros lugares religiosos, 6% são analfabetos. A taxa de mortalidade infantil é perto de 10%. É negado a 70% o direito de adorarem em templos locais. 57% das crianças Dalits abaixo da idade de quatro anos estão muito abaixo do peso. 300 milhões de Dalits vivem em total pobreza na Índia. 60 milhões de Dalits são explorados através do trabalho forçado. A maioria dos Dalits são proibidos de beber da mesma água que os de castas mais altas. Enfim, 300 milhões de Dalits estão escravizados e sem esperança debaixo do julgo do hinduísmo.
Na literatura, derrotar a ordem hindu pelo verbo tem sido um bravo movimento de democratização e de “desburguesamento”, confirmando o propósito da entrada da subversão na literatura indiana com a irrupção dos autores dalits: "Nasci quando o sol enfraqueceu / E lentamente se apagou / No abraço da noite./ Nasci numa viela/ Num trapo velho/ Cresci como alguém com um parafuso a menos/ Comi fezes e cresci./ Me dá cinco centavos, me dá cinco centavos/ E pegue cinco palavrões em troca/ Estou a caminho do santuário", escreveu o grande poeta Namdeo Dhasal, resumindo em algumas palavras o isolamento e a crueldade sofridas por sua comunidade. Os "intocáveis" estão na base da hierarquia social das castas que reinam na Índia desde a antigüidade. A poesia dalit nasceu desse sofrimento e das lutas obstinadas para conscientizar as populações, lideradas por personalidades como Mahatma Jyotiba Phule ou Bhim Rao Ambedkar . Ela emergiu nos anos 1960, no estado ocidental indiano de Mahrashtra, pátria de Ambedkar. Fala da humilhação no cotidiano, que toca a essência da vida. Em um poema sobre a água, Dhasal acusa: “Nós ensinamos mesmo à água a prejulgar a casta”. “Mesmo o sol deverá mudar”, escreveu Arjun Dangle, um outro poeta do Mahrashtra. Para eles, escrever não é apenas uma prática estética. Inspirados na rebelião dos poetas negros estadinidenses de Harlem Renassaince, fundaram, em 1973, o movimento Panteras Dalits. Aliam a prática poética a um ativismo político radical. Fundador desse movimento, Dhasal conhece a notoriedade com sua primeira coletânea de poemas intitulada Golpitha. Seus poemas chocaram o establishment literário pela crueza de linguagem, pelas evocações ousadas, onde se misturam a sexualidade, o desprezível e a revolta. Naipaul, que reencontra esse poeta rebelde nos anos 80, pinta com admiração um retrato do personagem em sua narrativa de viagem Inde, um million de revoltes: “A grande originalidade de Namdeo [Dhasal] está em ter escrito num estilo natural, utilizando as palavras e as expressões que serviam unicamente aos dalits (...). Seu primeiro livro de poemas foi escrito, especificamente, no idioma dos bairros de bordel em Mumbai. Foi isso que criou essa sensação”. Hoje, pode-se falar de um corpus realmente nacional da literatura dalit, com a entrada em cena dos escritores de língua tâmile, goujerati ou punjabi. Segundo Bama, a grande voz da literatura tâmile, no romance autobiográfico Sangati (A assembléia), “a literatura dalit é a única verdadeira literatura de libertação na Índia”.

AUGUSTO BOAL

A MORTE DE AUGUSTO BOAL

A LITERATURA, as artes cênicas e sua função pragmática estão de luto. Foi cremado na tarde do último domingo o corpo do diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta Augusto Boal. Morto na madrugada de sábado, aos 78 anos, Boal foi um dos expoentes do Teatro de Arena de São Paulo (1956 a 1970) e fundador do Teatro do Oprimido (inspirado nas propostas do educador Paulo Freire). Boal era conhecido internacionalmente pela importância do seu trabalho no teatro brasileiro, levando-o a diversos países e desenvolvendo-o, principalmente, na época em que esteve exilado durante a ditadura militar. Pelo reconhecimento da importância de sua obra, no final de março recebeu da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em Paris, o título de Embaixador Mundial do Teatro.
O dramaturgo é daqueles que se imortalizam pela obra deixada – uma certa função eternizadora – pois, de Boal, pode-se dizer, como o fez Aderbal Freire que “A gente sempre diz que os mortos são insubstituíveis, mas Boal, de fato, o é. Ele é um dos deuses do arquipélago do teatro, um dos mitos da nossa religião. É uma perda irreparável “.
Augusto Pinto Boal nasceu em 16 de março de 1931, na Penha, bairro da zona Norte do Rio. Suas técnicas e práticas difundiram-se pelo mundo, notadamente nas três últimas décadas do século XX, sendo largamente empregadas não só por aqueles que entendem o teatro como instrumento de emancipação política, mas também nas áreas de educação, saúde mental e no sistema prisional. Suas teorias sobre o teatro são estudadas nas principais escolas de teatro do mundo. No jornal inglês The Guardian, já se escreveu que "Boal reinventou o teatro político e é uma figura internacional tão importante quanto Brecht ou Stanislavski". Isto porque Boal nos representa no Brasil e fora dele. Há livros traduzidos em francês, holandês, mais de vinte línguas. O Teatro do Oprimido é estudado em muitos países.
Ao voltar de uma temporada em Nova York - onde estudou Engenharia Química (Columbia University) e dramaturgia (School of Dramatics Arts) e pôde acompanhar as montagens do Actor's Studio, que utlizava o método de interpretação Stanislavski - em 1956, Boal passa a integrar o Teatro de Arena de São Paulo, que se tornou uma das mais importantes companhias de teatro brasileiras. Com sua experiência, incentivou a encenação de textos brasileiros, de autores como Gianfrancesco Guarnieri, o que livrou o grupo da falência, na década de 50. Essa retomada do Arena causa uma revolução na cena brasileira, abrindo caminho para uma dramaturgia nacional de nomes como Oduvaldo Vianna Filho.
A enciclopédia do Itaú Cultural traz uma análise do crítico Yan Michalski, um dos mais importantes do teatro brasileiro, sobre Boal:
"Até o golpe de 1964, a atuação de Augusto Boal à frente do Teatro de Arena foi decisiva para forjar o perfil dos mais importantes passos que o teatro brasileiro deu na virada entre as décadas de 1950 e 1960. Uma privilegiada combinação entre profundos conhecimentos especializados e uma visão progressista da função social do teatro conferiu-lhe, nessa fase, uma destacada posição de liderança. Entre o golpe e a sua saída para o exílio, essa liderança transferiu-se para o campo da resistência contra o arbítrio, e foi exercida com coragem e determinação. No exílio, reciclando a sua ação para um terreno intermediário entre teatro e pedagogia, ele lançou teses e métodos que encontraram significativa receptividade pelo mundo afora, e fizeram dele o homem de teatro brasileiro mais conhecido e respeitado fora do seu país".
Com o fechamento do Teatro de Arena, veio o Teatro do Oprimido. Boal dizia que "o Teatro do Oprimido é o teatro no sentido mais arcaico do termo. Todos os seres humanos são atores - porque atuam - e espectadores - porque observam. Somos todos 'espect-atores'". Criada no final da década de 60, em São Paulo, sua técnica utiliza a estética teatral para discutir questões políticas e sociais.
Na década de 70, enquanto esteve exilado em Lisboa, durante a ditadura militar no Brasil, Boal difundiu o método na América Latina e Europa. Na época, Chico Buarque compôs "Meu caro amigo", como uma carta em forma de música, em homenagem ao dramaturgo.
Em 2008, foi indicado ao prêmio Nobel da Paz devido ao reconhecimento a seu trabalho com o Teatro do Oprimido. No dia 16 de março do mesmo ano, atores, teatrólogos e militantes da cultura comemoraram pela primeira vez o Dia Mundial do Teatro do Oprimido. A data foi escolhida por ser a mesma do nascimento de Augusto Boal. Fica a obra! Por si mesma tão grandiosa que o imortaliza!