sexta-feira, 18 de junho de 2010

II Colóquio do GEITES

A APROPRIAÇÃO DA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA NO TEXTO LITERÁRIO.

Luiz Guilherme Santos Neves

Cingindo-me a um terreno em que me sinto mais apto a pisar, muito embora com certa insegurança, propus-me conversar (ou coloquiar) sobre minha experiência pessoal como escritor que tem buscado na História o líquor para uns poucos romances que escrevi.

Eis a razão do título que dei a esta palestra: A APROPRIAÇÃO DA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA NO TEXTO LITERÁRIO.

Jorge Luís Borges escreveu que “o exercício das letras é um mistério”. (O Informe de Brodie, Porto Alegre/Rio, Editora Globo, 1983, 2ªedição, páginas 5 a 8, em tradução de Hermilo Borba Filho).

Não se referiu o mestre ao ato da escrita em si mesmo. Creio que porque o ato da escrita seja uma operação mecanicista, de movimentos diretos e quase que automáticos, da parte de quem escreve.

Ao se referir ao exercício das letras como um mistério, portanto, como algo que não se explica, Borges alargou a dimensão da sua observação ao campo da estética, e, particularmente, àquela faculdade da criatividade intelectual do homem imanente ao processo da elaboração e da inventiva literária. Ou seja: ao âmbito recôndito da formulação da obra literária a partir das potencialidades individuais, infinitas e imprevisíveis, de quem cria e rege o texto literário.

Estamos pisando assim a dupla fronteira da mestria e da maestria na feitura da composição do texto-litetatura.

Daí o mistério do exercício das letras a que, de forma econômica e eloqüente como lhe é peculiar, o grande Borges se referiu, pelo menos no meu apagado entendimento.

Acredito, porém, que exista para todo escritor, pouco importa o gênero em que transite, e antes que a operação artesanal do texto literário se configure segundo o mistério a que Borges alude, um instante primordial e único - o da centelha fulgurante que precede e move à misteriosa arte da escritura literária.

Refiro-me àquele ato de precedência da escrita – que também é um mistério no sentido borgeano da palavra até para quem o vive – que dispara a idéia do texto a ser escrito.

Dir-se-ia o momento do impacto da idéia no espírito, a fagulha da fábula, o estalo da inspiração (seja isso o que for), que motivará o processo da criação e do exercício da literatura como arte.

Um estalo de lucidez surpreendente mas que pode ser fazer fugaz, que incitará (talvez seja este o verbo adequado) o autor ao ato-arte do fazer literário.

Estas considerações, a título de nariz de cera, têm o propósito de introduzir o tema desta palestra ou, melhor dizendo, de me introduzir no tema dela.

Como já ressaltei que só posso falar da minha experiência pessoal no terreno da autoria literária, a ela me limitarei neste colóquio, sem presunção ou cabotinismo, visto que desta experiência é que posso dar meu testemunho.

Tenho procurado nas minhas poucas obras literárias, notadamente em alguns romances, defluir meus textos e consubstanciá-los a partir de episódios da História, em especial da história do Espírito Santo. Esta tem sido a minha base, o pedestal em que alicercei romances como A Nau Decapitada; As Chamas na Missa; O Templo e a Forca; O Capitão do Fim, e até crônicas como as da Insólita Fortuna.

E, por regra, parto sempre da história já contextualizada, ou, se melhor encontro a expressão, parto da história “hitoriografada”.

Tomo como primeiro exemplo o romance A Nau Decapitada. A centelha que o originou, como projeto de romance, foi um texto da autoria de um dos presidentes da província do Espírito Santo, o bacharel José Joaquim Machado de Oliveira.

Machado de Oliveira deixou uma narrativa escrita, e escrita até com ironia, sobre as desventuras e aborrecimentos por que passou na viagem que fez em setembro de 1840, no brigue “Vinte e Nove de Maio”, do Rio de Janeiro para Vitória, a fim de assumir a governança do Espírito Santo.

Quase ao adentrar a baía de Vitória, o brigue em que ele vinha, depois de perder os mastros que desabaram no convés, foi, por ventos contrários, impelido mar ao sul até a praia de Piúma. Ali desembarcou Machado de Oliveira que ainda teve o desprazer de ver o brigue partir no dia seguinte levando o seu “trem de viagem”, como se referiu o presidente ao seu baú de roupas, deixando seu dono desamparado na praia como um náufrago infeliz.

Tão grato fiquei ao presidente Machado de Oliveira por me ter fornecido a matéria-prima para o romance que fiz questão de transcrever, como apêndice dele, a íntegra do texto que o originou. Dava assim aos meus possíveis leitores, a oportunidade de identificar a pista de onde a obra nasceu.

Outras experiências se repetiram segundo o paradigma que gerou a Nau.

No caso do romance As Chamas na Missa, a fagulha inspiradora veio-me da leitura do livro Denunciações de Pernambuco – 1593-1595, contendo os autos da Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil, pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça (São Paulo, 1929, Série Eduardo Prado, sem indicação de editora).

Já no caso de O Templo e a Forca, e também no de O Capitão do Fim, foram diversos os textos historiográficos que os deflagraram. O ponto de partida do primeiro foi a Insurreição do Queimado, uma revolta de escravos negros ocorrida na Serra, em 1849; o do segundo, foi Vasco Fernandes Coutinho, primeiro donatário da capitania do Espírito Santo portador de uma biografia extraordinária, verdadeira epopéia camoniana que temperou a existência de Coutinho na Índia e no Brasil. Em ambos os casos pesquisas de cunho histórico foram feitas para que a urdidura dos romances viesse a lume. Em relação a O Templo e a Forca um comentário lateral merece encaixe. O tema eu já o havia utilizado na elaboração de uma peça teatral chamada Queimados – Documento Cênico, datada de 1977. O retorno ao mote da insurreição se deu – e vinte anos depois sob a forma romanceada – por insatisfação pessoal do autor que achava que o tema ainda tinha muito a oferecer em um segundo texto ficcional, para cuja elaboração a própria peça deu contribuição complementar.

Mas é hora de colocar aqui uma observação indispensável. Nos livros antes citados, aos quais poderia se acrescentar o conjunto de vinte e uma crônicas baseadas em figuras da história do Espírito Santo, a que dei o título de Crônicas da Insólita Fortuna, a finalidade dos textos não foi histórica, no sentido estrito desta expressão.

Em todos eles evitei a toda prova (ou em toda a prosa) me deixar engessar pela contextualização historiográfica do conhecimento sistematizado.

O motivo histórico não foi para mim um fim em si mesmo, mas a matéria com que trabalhei os meus escritos, o meu trigo literário.

Um outro exemplo vem a propósito.

Um dos textos das Crônicas da Insólita Fortuna tem por título Firmiano, índio botocudo. A crônica se baseou num registro feito pelo naturalista Auguste de Saint-Hilaire quando esteve no Espírito Santo, em 1818, sobre a reação da população de Benevente diante de um índio botocudo, já civilizado, de nome Firmiano, que integrava a caravana de Saint-Hilaire. Nessa reação aflorou o ódio que os capixabas tinham aos botocudos. O registro do ilustre viajante é o seguinte:

“Correram mais ou menos duas horas para que chegasse à margem esquerda do Benevente toda a minha caravana e, durante esse tempo, tive de ficar na praia com meus objetos expostos ao sol mais ardente. Sendo precisamente aquele dia um domingo e além do mais, festa do Rosário, uma multidão de toda a vizinhança havia chegado à vila.

Tão logo desembarquei, fez-se um círculo à nossa roda e, a cada instante, mais aumentava a gente. Índios civilizados, negros, luso-brasileiros, todos nos olhavam quase mudos, com jeito estranho e estupidificado. Mas era principalmente Firmiano quem atraía o olhar dos curiosos; suas orelhas e seu lábio superior furados comprovavam sua origem e, sendo o nome de seu povo aqui execrado, dirigiam-lhe injuriosas invectivas. O pobre rapaz, confundido e perturbado, baixava os olhos sem proferir sequer uma palavra e escondia o rosto nas mãos. Afinal, esgotou-se minha paciência: disse aos presentes as verdades mais duras e repreendi sua desconsideração, crueldade e estupidez. Fui calmamente ouvido; nada me responderam. Mas, ninguém pensou em retirar-se. Em honra da festa, todos os índios estavam mais ou menos embriagados e um deles, que provavelmente seguia conselho dos demais, veio gritar em meus ouvidos que um botocudo não devia aparecer nesta região, senão para ser preso, acrescentando que ia comunicar o que se passava ao comandante da milícia. Prègent respondeu a esse homem com certa rudeza e pôs os curiosos a seu favor. Não sei se o índio cumpriu a ameaça que fizera, mas, poucos momentos após a breve cena, cuja narração acabo de fazer, apareceu o comandante e pediu para ver meu passaporte. Quando o leu, prodigalizou-me gentilezas e pôs fim aos meus aborrecimentos, fazendo preparar no antigo mosteiro o alojamento reservado aos viajantes.” (SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce, Itatiaia, Belo Horizonte, 1974, tradução de Milton Amado).

Esse foi o incidente narrado pelo notável naturalista francês, um ambientalista do século XIX. Dele parti eu com a crônica literária sobre o botocudo Firmiano.

Firmiano, índio botocudo

Se fosse Firmiano o índio botocudo que pensavam que ele fosse, não teria ficado ali, inerme, diante de todos. Se Firmiano ainda conservasse no sangue o ímpeto feroz da sua raça, temida e odiada pelos habitantes do litoral do Espírito Santo, não se teria mantido cabisbaixo, as mãos tapando o rosto, diante do povo. Se, enfim, ainda fosse capaz de uma reação à altura da tradição guerreira dos botoques que trazia enfiados nos lóbulos das orelhas, não teria se deixado intimidar pelas afrontas que ouvia, quedando-se mudo de voz e quieto de ação, como um coelho encurralado em sua pasmaceira.

A expedição de Augusto de Saint-Hilaire havia chegado a Benevente sob o calor de um domingo ensolarado, no dia das festividades de Nossa Senhora do Rosário. A festa, que incluía missa, procissão e o baticum de congo, cujos congueiros levantavam, com sua passagem, a poeira das ruas da vila miserável, tinha atraído a Benevente os lavradores das redondezas, que se misturavam aos moradores do lugar. O bafo de aguardente, vendida sem controle, pairava no ar. Aos poucos, mulheres foram se juntando aos homens, quando correu, de casa em casa, a notícia da chegada dos forasteiros.

A tropa de Saint-Hilaire despontou na margem direita do Benevente, chamando a atenção do povo do outro lado do rio. O naturalista vinha da Corte, pela estrada do Mar, em caminhada exploratória do litoral do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Fazia parte da sua comitiva o índio Firmiano, além de outros guias e batedores. Mas foi somente depois que os viajantes atravessaram o Benevente que o povo deu com o botocudo e em torno dele formou a roda dos impropérios.

Se um dizia mata, espumando ódio pela boca, outro dizia esfola, cuspindo no chão o sargaço da cachaça. A situação inusitada pegou de surpresa o próprio Saint-Hilaire, que se viu relegado a segundo plano, na atenção que em outras condições suscitaria, com seu chapéu europeu e a sobrecasaca negra.

Firmiano era um botocudo jovem, de estatura mediana e feições grosseiras, como os naturais da sua espécie. O cabelo escorrido, cortado em cuia, deixava visíveis as orelhas grandes, nas quais sobressaíam os adornos de madeira nelas incrustados. O beiço, porém, não tinha o aleijão do furo onde os botocudos das selvas costumavam cravar a bandeja do botoque. Usava calça comprida e branca, mas que deixava à mostra as canelas e os pés descalços. A camisa, de gola ampla, era também branca, tinha mangas folgadonas e não possuía bolsos, caindo em forma de bata sobre a calça. Na sua parte inferior, Firmiano dera um nó, um nó cego, um firme nó de índio, nó do índio Firmiano, pouco volumoso, como se fosse uma cabeça de alho.

Olho este nódulo preso na ponta da camisa, e me pergunto, que nó é este? Nó de proteção contra a má sorte não parece ser, pois que não está servindo de ajuda nesta hora em que o botocudo se encolhe na brandura que lhe impingiram os que o civilizaram fora da tribo e fora das matas, de onde foi recolhido antes de se tornar um bravo. Nó contra esquecimento não pode ser, porque não consta que fosse costume indígena segurar com marcas e sinais detalhes que não deviam ser olvidados. Será então um talismã, um talismã à mão, que Firmiano leva no nó da bata para os esconjuros das doenças, ali protegido dos olhos alheios para que não perca a força, nem o sortilégio defensivo que só Firmiano sabe qual é?

Não dá, porém, para maiores conjecturas. Aos gritos de “sai, sai fora, deixem passar a lei,” aparece o delegado, empregando-se em restabelecer a ordem pública perturbada pelos que ameaçavam o botocudo. A confusão torna-se maior ainda porque, aos gritos do delegado, se somavam os protestos de Saint-Hilaire, na defesa do seu ajudante.

Acalmados os ânimos, e tendo o delegado se desmanchado em desculpas ao ler a carta assinada pelo ministro Tomás Antônio de Vila Nova e Portugal, recomendando Saint-Hilaire às autoridades do Espírito Santo, só nos resta acompanhar os passos da expedição de olho naquele nó e em seu mistério impenetrável, que segue amarrado na fralda da camisa de Firmiano.

De Benevente passou Saint-Hilarie a Guarapari, de Guarapari à barra do Jucu, daí à vila da Vitória, cabeça da capitania, sendo recebido pelo governador Rubim, cabeça do governo. Encerrada a audiência, retirou-se o naturalista para a fazenda do Romão, ao pé do rochedo de Jucutuquara. Do pé do rochedo, subiu depois ao cume do Mestre Álvaro, na Serra, e estamos encurtando viagem.

A escalada do morro fez-se íngreme e demorada, cortando a mata, cortando o mato, cortando espinheiros e cipós-serpentes, pelas trilhas da encosta. Num ponto da subida os expedicionários estancaram, porque ouvia-se uma cachoeira que entoava um canto de mãe d´água, conclamando para um banho de refresco, um banho à moda indígena, irresistível a Firmiano.

Autorizado por Saint-Hilaire, ele se despe: de um arrancão tira a camisa pela cabeça e tira a calça de um arranco, de dentro da qual brota liso e botocudo, como Tupã o criou.

Este banho, na rampa do morro, claro que tem o seu lugar e é bem-vindo, mas serve apenas de pretexto para mostrar que o nódulo da bata de Firmiano continua inalterável como antes.

Do alto da serra, extasiado com o cenário visto lá de cima, desce Saint-Hilaire à sua base. Há ali, onde as lavouras ganham força renovada, quando o solo se refrigera no ocaso à sombra da grande montanha, uma choupana de barro. Nela Saint-Hilaire e seus companheiros fazem uma parada para recuperar o fôlego, que as descidas dos morros também dão as suas canseiras.

Mas não a Firmiano, que aproveitou o momento de descanso e ficou fora do casebre, a futucar o solo com as mãos. Em seguida, sem explicar a ninguém por que tinha escolhido aquele local, e não um outro, desfez com os dedos sujos o nó da bata e depositou, nas covas que abrira à sombra do Mestre Álvaro, as sementes do primeiro café que na capitania do Espírito Santo foi plantado.

Esta é a liberdade criativa a que me dou, e nem podia ser diferente, ao tratar a história de forma ficcional, ou seja, no exercício das letras, sem me atrever a desvendar o mistério que esse exercício implica, muito embora me deixando conduzir e dominar pelo mistério que neste exercício existe, segundo a frase lapidar de Jorge Luis Borges.

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